"A Família" foi um culto bizarro que acreditava no Fim do Mundo e na divindade de sua líder. Ele surgiu na Austrália em meados dos anos 1960, com uma estranha mistura de Cristianismo e Hinduísmo, proclamando que sua chefe espiritual, Anne Hamilton-Byrne, era uma Messias, ou a encarnação feminina de Jesus Cristo.
É claro, cultos desse tipo sempre existiram e continuam existindo. Muitos líderes carismáticos conseguem convencer seus seguidores das mais estranhas noções, por mais estranhas que possam soar. Alguns desses líderes se dizem sobre-humanos, reencarnações, profetas anunciados, mensageiros de seres iluminados, de extraterrestres etc. O que tornava a Família diferente era algo especialmente desprezível. Além dos adultos que cegamente seguiam Hamilton-Byrne, a Seita alistava crianças, especialmente "adotadas" e criadas acreditando que sua líder, profeta e mestra, era sua mãe.
É possível que Anne Hamilton-Byrne tenha adotado mais de 30 crianças, sendo que ao menos 14 delas acreditavam ser ela sua mãe legítima. Elas teriam sido concebidas pelo poder sagrado de Deus. Anne adorava a ideia de ter crianças ao seu redor, mas não a de educá-las ou criá-las de uma forma convencional. Tudo o que elas precisavam saber é que em um futuro muito próximo aconteceria uma Guerra Devastadora, envolvendo armas de destruição em massa. Os que não acreditavam nos ensinamentos da Família estavam fadados a morrer e por isso elas precisavam ter fé.
A Messias falava constantemente desse Apocalipse, descrevendo como os ímpios seriam afogados em um mar de sangue, como a fome e a doença os destruiria lentamente, corrompendo e apodrecendo seus corpos de dentro para fora e como o sofrimento seria insuportável. Falava de corpos queimando até restarem apenas ossos enegrecidos. Mostrava então para as crianças fotografias de campos de concentração, de bombardeios da segunda guerra e de atrocidades inimagináveis. Tudo isso com o propósito de aterrorizar as crianças e realizar uma lavagem cerebral fazendo com que elas acreditassem naquela fábula perturbadora.
Uma vez extinta, a raça humana deveria começar do zero.
Segundo a Doutrina da Família, os espíritos dos milhões de mortos nessa guerra seriam reencarnados nas crianças escolhidas e caberia à elas reconstruir a humanidade. Sua mãe, a reencarnação de Jesus, seria a responsável por salvá-los das chamas e destruição e guiá-las em um futuro glorioso.
A Seita ocupava uma imensa propriedade nas proximidades do Lago Eildon, arredores de Melborne. O lugar era afastado de tudo e todos, protegido com arame farpado e cercas eletrificadas que mantinham visitantes e curiosos afastados. Placas advertiam que invasores poderiam ser alvejados. Todo a fazenda era auto-suficiente, produzindo sua própria comida. O contato com o mundo exterior era proibido e ninguém deveria saber o que acontecia do lado de fora da sede da família. O mundo exterior, nas palavras de Anne, era tão venenoso que algumas poucas horas do lado de fora eram suficientes para aniquilar a alma.
Os membros do Culto realmente acreditavam em todas as histórias que a Messias contava.
As pessoas eram forçadas a jejuar por dias e dias, consumir doses maciças de LSD para ter visões e vestir apenas as roupas dadas pelo culto - de um branco imaculado. Por vezes, Anne impunha um regime de silêncio completo, no qual o menor sussurro era proibido. As pessoas passavam dias e dias em silêncio. Aqueles que desrespeitavam as regras eram mandadas para o "retiro", um poço, onde ficavam trancafiadas.
O horror no seio da Família era algo comum. Sempre houve rumores a respeito de abusos no lugar: agressões físicas, morais e punições severas eram algo corriqueiro para os membros. Ninguém estava seguro, dependendo do humor de Anne, uma pessoa podia ser ridicularizada, agredida e aprisionada.
Mas como a situação chegou a esse ponto?
Anne Hamilton-Byrne nasceu com o nome Evelyn Edwards em 1921. Ela não conheceu seu pai e sua mãe passou a maior parte de sua vida em um Hospital para Mentalmente Perturbados, diagnosticada como Esquizofrênica Paranoide. Por muito tempo havia o rumor de que sua mãe teria sido estuprada por um funcionário do Manicômio. A menina foi criada em meio aos internos, sendo posteriormente considerada como uma deles apesar de jamais ter passado por uma análise psiquiátrica. Eventualmente ela começou a trabalhar como faxineira no manicômio e depois foi aceita como enfermeira.
Quando completou 25 anos, a Instituição foi fechada e ela perdeu o único lar que conhecia até então. Jovem e bonita, Evelyn seguiu para Melborne onde morou na rua por meses. Apresentando-se como enfermeira, ela adotou o nome Anne Hamilton-Byrne.
Aos 30 anos de idade, Anne tinha uma vida no mínimo peculiar. Ela dizia ser viúva, seu marido teria morrido em um acidente de automóvel. Ela também dizia ser uma cantora de ópera, tocar harpa, cantar em um coral e dançar em uma companhia de balé. Para alguns dizia ter sobrevivido ao holocausto nazista, tendo passado por Auchwitz e imigrado para a Austrália em busca de um novo começo. A verdade é que Anne era uma mentirosa compulsiva. Para cada pessoa que conhecia, inventava uma história diferente. Em algum momento, aprendeu noções básicas de ioga e se sentiu à vontade para ensinar outras pessoas a respeito de meditação e religiões orientais. No início dos anos 60, quando o Espiritualismo se espalhou na Austrália, Anne se apresentou como uma espécie de autoridade no assunto e fez muitos amigos influentes. Abraçava várias bandeiras e se tornou uma líder do movimento feminista na Austrália, participando de programas de televisão e debates.
Como uma professora de ioga, ela se estabeleceu em Melborne convencendo algumas pessoas a investir em suas técnicas de meditação. Anne se aproximava de mulheres de meia idade, a maioria delas infeliz em seus casamentos e com filhos já adultos. As convencia a pedir o divórcio, um tabu na época, e seguir os seus conselhos cegamente. Ela também recrutava homossexuais e pessoas desajustadas na sociedade para aprender suas técnicas de cura interna. Anne dizia oferecer amor e compreensão a todas as pessoas que precisavam.
Ela era extremamente carismática e irresistível, persuadindo as pessoas a se juntar ao seu grupo que crescia a cada dia. Em 1961, ela conheceu Raynor Johnson, um conceituado médico formado em Oxford e professor no Colégio Metodista em Melbourne há mais de 30 anos. Johnson tinha enorme interesse em misticismo e espiritualidade e havia publicado vários livros a respeito desses temas.
O médico estava prestes a se aposentar e em busca de alguma coisa para dedicar seu tempo livre. Ele viu em Anne algo diferente e decidiu ensinar a ela noções de teologia, filosofia e psicologia. Pouco depois, Johnson ofereceu a Anne uma propriedade nos arredores de Melborne onde ela poderia construir uma escola de ioga. O lugar recebeu o nome de "Santiniketan", mas seus membros cada vez mais numerosos passaram a chamá-la de "O Lar da Família".
A Escola de Ioga logo se tornou bastante famosa e caiu nas graças de círculos da elite de Melbourne. A nata da sociedade vinha até Anne para aprender suas técnicas de meditação que prometiam revitalizar os alunos física e espiritualmente. Mais ou menos nessa época, ela passou a fazer experiências com LSD, uma droga considerada recreativa e que teve grande aceitação na Austrália na primeira metade dos anos 60. Durante as suas viagens alucinantes induzidas pelo LSD, Anne se convenceu de que era a reencarnação de Jesus Cristo. As noções estranhas e de fundo religioso afastaram parte dos seus alunos, mas outros acabaram se entregando de corpo e alma aos ensinamentos da mulher que se dizia uma Messias.
Nascia assim o Culto da Família.
A Escola de Ioga foi fechada e em seu lugar surgiu um templo dedicado a ensinamentos de filosofia oriental, meditação, idiomas e filosofia. O lugar era, no entanto, uma fachada para as estranhas celebrações comandadas pela Messias que oferecia aos seus seguidores uma espécie de comunhão com hóstias cobertas de LSD.
Em 1968, Hamilton-Byrne teve uma nova visão: Ela deveria começar a adotar crianças que se tornariam a base de seu Tabernáculo. Quatorze dessas crianças eram bem jovens ou simples bebês, algumas delas filhas de membros da seita que renunciaram a paternidade em favor de sua líder. Outras foram legalmente adotadas através de procedimentos apoiados por médicos, assistentes sociais e advogados que trabalhavam para a Família. As leis australianas eram bastante flexíveis e existiam poucos entraves para quem quisesse adotar no país.
"O culto escolhia as crianças que desejava em orfanatos e hospitais. Eles contavam com uma rede de informações entre parteiras e assistentes sociais. Eles davam preferência a crianças com o mesmo perfil, loiras e altas" conta Lex de Man, um dos detetives que ajudaram a montar um caso para a Promotoria contra a Família. Membros do Culto também aliciavam mães solteiras e mulheres grávidas para que cedessem suas crianças para adoção. Algumas chegaram a ser pagas para abdicar da maternidade e simplesmente entregar as crianças à estranhos que prometiam "tomar conta" dos recém nascidos.
Anne passou a chamar a si mesma de "Grande Mãe" e "Provedora" e as crianças foram sendo levadas até a propriedade às margens do Lago Eildon. Lá funcionava uma espécie de abrigo, internato e creche.
A relação estabelecida entre Anne e as crianças era absurdamente bizarra. Embora construísse uma espécie de identidade afetiva, moldando a personalidade das crianças para que elas tivessem total dependência, ela própria afirmava ser preciso manter um distanciamento para não se apegar a nenhuma. Assim, a Messias jamais retribuía as demonstrações de afeto e devoção dos pequenos. A parte mais triste é que as crianças eram forçadas a amar incondicionalmente Anne e implorar a ela por atenção. As babás que cuidavam das crianças eram proibidas de falar com elas, demonstrar qualquer emoção e mais bizarro, usavam máscaras o tempo todo para que nenhuma criança pudesse estabelecer com elas um vínculo afetivo.
Quando completavam sete anos as crianças passavam a viver em um alojamento comunitário. Lá o tratamento dispensado era ainda mais brutal, marcado por severas punições que incluíam surras e humilhação. As crianças eram mantidas com fome e vigiadas constantemente por câmeras. Aquela que esquecesse de rezar para sua Messias ou não pedisse permissão para ir ao banheiro, por exemplo, era mandada para uma cela onde recebia doses maciças de Mogadon e Valium para se tornar obediente.
Para piorar, ao chegar aos 14 anos, as crianças passavam por uma espécie de ritual de iniciação que envolvia receber LSD pela primeira vez. Nessas celebrações ocorridas no templo, ocorriam orgias e algumas crianças supostamente acabavam sofrendo abuso sexual. Após a traumática iniciação, meninos e meninas eram transferidos para os alojamentos dos adultos onde passavam a ser vistos como membros da Família. Lá recebiam doses de LSD e aprendiam os fundamentos da caótica doutrina idealizada pela Grande Mãe.
O número oficial de crianças adotadas legalmente chegou a 30, mas acredita-se que muitas outras tenham sido levadas clandestinamente ao Templo. Não há como saber ao certo quantas delas teriam sucumbido ao regime de fome e maus tratos da Família. Embora os rumores a respeito de mortes tenham sido sugeridos, não há como saber ao certo o que ocorreu ao longo dos anos. Sabe-se entretanto, que a Família possuía um crematório particular e que esse pode ter sido o destino de inocentes.
Durante seu funcionamento entre 1968 e 1987, a Família prosperou como Instituição Religiosa. A Seita adquiriu milhões de dólares em dinheiro e propriedades doados por seguidores em toda Austrália, Europa e América. Membros da Família transmitiam todos os seus bens sem hesitação, acreditando nas palavras da Profeta que afinal de contas, era sua Deusa e Guia.
Em 1986, uma das crianças adotadas pela Família, Sarah Hamilton-Byrne, conseguiu escapar da Sede da Família e buscou socorro. Os sinais inequívocos de maus tratos na garota de 17 anos acendeu um sinal de alerta nas autoridades australianas. Psicólogos e assistentes sociais ajudaram a menina a revelar o que acontecia secretamente na Sede da Família, apesar dela estar temerosa de trair sua "mãe" contando a estranhos sua rotina de vida.
O depoimento da menina foi crucial para o início de uma investigação em larga escala a respeito da Família e sua consequente destruição. Com base no testemunho a polícia conseguiu um mandato de busca e apreensão que permitia entrar na Sede do Templo no Lago Eildon. Na propriedade as autoridades encontraram pelo menos 20 crianças que foram recolhidas e levadas a abrigos.
Anne Hamilton-Byrne conseguiu escapar para os Estados Unidos em 1987, ela tinha uma propriedade em seu nome e conseguiu um visto de permanência. Depois que o escândalo veio à tona, o governo americano começou a negociar sua extradição. Ela finalmente foi enviada de volta para a Austrália em 1993, escoltada pelo FBI. Infelizmente as únicas acusações levantadas contra a Messias envolviam fraude fiscal e conspiração para forjar documentos de adoção.
Atualmente Anne vive em um lar para idosos em Melbourne. Ela tem 97 anos de idade e sofre de um quadro avançado de Demência e Alzheimer, agravado pelo uso contínuo de LSD ao longo de boa parte de sua vida. Hoje, ela não é capaz de reconhecer todo o mal que causou.
Após a revelação do que acontecia na Família, a Seita foi extinta e seus membros presos acusados de vários crimes. A população da Austrália se mostrou chocada pelas revelações feitas e o escândalo foi manchete em jornais de todo o mundo. A liberação das crianças e jovens mantidos pelo Culto, deu ensejo a livros e depois documentários a respeito da Família. Muitos dos sobreviventes passaram a sofrer com o trauma, desenvolvendo depressão, ansiedade e afastamento social.
Ainda hoje, o caso envolvendo a Família é considerado como o mais chocante e perturbador da história da Austrália. Longe de ser o único exemplo de Seita com ideais estranhos e práticas moralmente reprováveis, ele se sobressai por envolver crianças, o que torna tudo ainda pior.
Fonte: Mundo Tentacular
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