O mistério da erva romana mais valiosa que o ouro que sumiu sem deixar rastros

em 29/05/2018


Muitos e muitos anos atrás, na antiga colônia grega de Cirene, havia uma erva chamada silphium. Não parecia nada especial para quem a olhasse, mas sua seiva, além de perfumada e saborosa, tinha utilidades práticas. E silphium por vezes valia mais que ouro no mercado.

Passaríamos páginas aqui descrevendo seus usos. Seu caule era comestível, bem como suas raízes, normalmente servidas como um petisco marinado em vinagre. Cozida junto com lentilhas, a erva atuava como conservante. E criadores de carneiros e ovelhas obtinham carne mais macia se alimentassem seus animais com silphium.

Mais? Suas flores amarelas eram matéria-prima para perfumes, ao passo que a seiva, depois de desidratada, podia ser ralada para dar tempero a pratos como flamingo grelhado, por exemplo. O condimento, conhecido como "laser", era fundamental na alta cozinha do Império Romano.

A erva tinha ainda aplicações médicas e era usada para uma série de condições, de hemorroidas a mordidas de cães.

Por fim, silphium era útil no quarto: além de afrodisíaco, a erva pode ter sido um dos primeiros métodos anticoncepcionais por seu potencial de "purgar o útero". Há historiadores que dizem que o formato de coração de suas raízes pode ser uma das origens de nossa associação do romance com o símbolo.

E os romanos amavam tanto a silphium que faziam referência a erva em poemas e canções, eternizando-a também em sua literatura. Por séculos, soberanos detinham o monopólio sobre a planta. Isso fez de Cirene, localizada onde hoje fica a cidade líbia de Shahhat, um dos lugares mais ricos da África. A erva era representada até no dinheiro usada pelos locais.

O famoso imperador romano Júlio César gostava tanto do silphium que chegou a armazenar mais de 680 kg da erva no Tesouro Romano.

No entanto, a planta hoje não existe mais e apenas algumas imagens estilizadas e relatos de naturalistas permanecem. Sendo assim, a verdadeira identidade da erva favorita dos romanos é um mistério. Para alguns historiadores, a planta foi extinta, mas outros especialistas acham que ela ainda pode existir no Mediterrâneo como uma variação.

Como isso aconteceu? E podemos trazer a erva de volta?

Reza a lenda que a silphium foi descoberta depois de uma imensa tempestade na costa leste da Líbia, há mais de 2,5 mil anos. A partir dali, a erva teria se espalhado pela região, crescendo de forma abundante em colinas e planícies.

Isso pode soar estranho, já que o norte da África não é muito conhecido por seu potencial agrário. Mas a região de que estamos falando, conhecida na antiguidade como Cirenaica, marcada por verdejantes planaltos, é conhecida pela abundância de água. Algumas partes hoje recebem 85 cm de água por ano, um índice de pluviosidade parecido com o do Reino Unido.

A região foi originalmente colonizada pelos gregos e anexada pelos romanos por volta de 96 a.C. - algumas décadas depois, Cirene foi dada por Atenas a Roma. Quase imediatamente, os estoques de silphium começaram a diminuir em um ritmo alarmante. Apenas 100 anos mais tarde, a erva tinha desaparecido - Plínio, um dos mais conhecidos historiadores romanos, escreveu que mudas da erva eram sumariamente extraídas e enviadas de presente ao imperador Nero por volta dos anos 56 a 84 d.C..

O grande problema é que a planta é o que se pode chamar de temperamental: só crescia em Cirenaica e ocupava uma área total de 201 km de comprimento por 40 km de largura. Por mais avançadas que fossem para a época, as civilizações grega e romana não conseguiram reproduzir a silphium em outras regiões.

Em vez disso, a erva era colhida em sua forma silvestre, e embora houvesse controle rigoroso da extração, havia um próspero mercado negro para o produto. A seiva ressecada, por exemplo, era vendida por traficantes nas ruas a preços exorbitantes. E não raramente os fregueses levavam "gato por lebre", adquirindo sem saber a "assa-fétida", um tempero popular na Índia e conhecido pelo seu odor sulfuroso - e que os romanos acabaram considerando um substituto razoável para a silphium.

Traficantes também "malhavam" a erva, misturando-a a mostarda e outras plantas como o zimbro - mais conhecido hoje por seu papel na preparação do gin.

O silphium era um 'parente' do salsão e usado como tempero, remédio, afrodisíaco e anticoncepcional
Mas porque o silphium não podia ser cultivado? Mesmo um dos mais conhecidos botânicos da antiguidade, Teofrasto, não conseguiu explicar a razão. Não adiantou sua amizade com Aristóteles - que além de filósofo é o pai da Biologia. Mas Teofrasto ao menos observou algo relevante: as plantas tendiam a crescer melhor em terras escavadas um ano antes.

Há várias razões que podem explicar isso. "Normalmente, o problema é relacionado às sementes", diz Monique Simmonds, vice-diretora de Ciências de Kew Gardens, o principal jardim botânico do Reino Unido.

Ela cita como exemplo as papoulas. Uma única planta pode produzir até 60 mil sementes, mas elas precisam ser expostas à luz para germinar. Sem isso, apenas ficarão na terra até que sejam comidas ou apodreçam. Sendo assim, papoulas vingam em solos "perturbados", em que a luz pode invadir fendas no solo.

Mas há outras explicações - e o melhor lugar para procurar pistas talvez seja outra planta que desafia fazendeiros: o mirtilo tipo huckleberry. Nos Estados Unidos, centenas de milhares de pessoas anualmente invadem os parques nacionais com cestas em punho em busca de uma fruta cobiçadíssima ao redor do mundo - e nem possíveis encontros com ursos desanimam a turma.

As frutas avermelhadas - ao contrário do mirtilo azul mais comum - fazem parte de geleias, molhos, tortas, sorvetes, drinques alcoólicos e até curries. E, todos os anos, a demanda é superior à oferta, pois não há uma única fazenda de huckleberries na América do Norte.

Colonizadores europeus bem que tentaram trazer a fruta, mas falharam. Esforços sérios mais recentes de cultivo tiveram início em 1906, mas os mirtilos ainda resistem à produção controlada - onde foram cultivados, não deram fruto.

O huckleberry é nativo de encostas de montanhas e florestas norte-americanas. As frutas crescem em arbustos e tem raízes "espalhadas" pelo solo. A falta de um enraizamento mais centralizado faz com que os mirtilos sejam especialmente difíceis de transplantar. Fazendeiros durante anos cometeram o erro de confundir o caule subterrâneo da planta com as raízes.

Tentar replantá-las desse jeito era o mesmo que esperar que folhas germinassem.

Só que nem mesmo os avanços tecnológicos da botânica conseguiram subjugar os huckleberries. E o mais curioso é que não parece haver grandes segredos em seu crescimento. A resposta está no habitat, segundo especialistas. "As plantas em uma determinada área têm grande impacto na química do solo", explica Simmonds.

A agricultura inevitavelmente afeta o equilíbrio entre elementos químicos no solo, como o magnésio, e isso resulta no fato de que algumas plantas jamais "pegarão" em terras cultivadas. Hoje, o único método conhecido de cultivar esses mirtilos é desmatar uma região e deixar as plantas em paz.

Para Kenneth Parejko, biólogo da Universidade de Wisconsin (EUA) que estudou o "enigma do silphium", plantas silvestres são particularmente sensíveis a essas alterações. "No norte dos EUA, há muitas flores silvestres que crescem nas pradarias, mas que não sobrevivem se tentarmos plantá-las no jardim."

Talvez os gregos estivessem a par disso. Há registros de tentativas de cultivo da erva na Europa, mas o diagnóstico foi que a planta carecia de um determinado "humor" para germinar - a teoria humoral associava temperamentos com fluidos corporais e foi o principal corpo de explicação racional da medicina até o século 17.

Há outra possibilidade: o silphium era um híbrido. O cruzamento de espécies é conhecido em diversos ramos da biologia. Um camelo macho com uma lhama fêmea, por exemplo, resultam nos "camas", filhotes com o potencial de produção de lã da mãe e a força do pai. No mundo das plantas há os morangos de jardim, cruzamento das variedades norte-americanas e chilenas - as frutas resultantes são maiores e mais suculentas.

E o que dizer do milho, o mais conhecido híbrido da agricultura e cuja produção anual supera 360 bilhões de metros cúbicos? Mas enquanto a primeira geração dessas uniões pode ser altamente desejável, seus "filhos" e "netos" frequentemente não estão no mesmo nível. Híbridos de segunda geração são extremamente imprevisíveis por causa de desequilíbrio genéticos - imaginem um animal com o temperamento da lhama e a capacidade de produção de lã de um camelo, por exemplo.

Em plantas selvagens, porém, isso não é um problema. O cruzamento precisa acontecer apenas uma vez e, a partir daí, as plantas não crescem de sementes, mas através de reprodução assexuada pelo avanço das raízes. Um exemplo está nos cemitérios do Oriente Médio, em que um tipo de íris cresce em túmulos muçulmanos milhares de anos depois do primeiro cruzamento em algum deserto - isso apesar das plantas serem estéreis.

Se o silphium era realmente um cruzamento e os gregos tentaram cultivá-lo com sementes, o resultado provavelmente seria difícil de reconhecer. Curiosamente, isso se encaixa com relatos sobre a presença da erva em mercados de regiões como o norte do Irã e a Síria, ainda que em uma variação bem menos valiosa que a de Cirene. Sabemos que mercadores podem ter vendido gato por lebre, mas talvez estejamos falando de algum tipo de descendente do silphium.

Mas o grande problema era a cobiça. Plínio escreveu que senhorios romanos eram obrigados a cercar pastagens com a presença do silphium para evitar que servissem de alimentos para ovelhas. Mas houve rebeliões em que pastores em busca da valorização de seu estoque - lembremos que as ovelhas alimentadas com a erva tinham carne mais cara - derrubavam as cercas.

Sendo assim, o silphium estava sendo atacado por todos os lados. Extraído e pastado à exaustão. E pode ter sido minado também por sua própria biologia. Embora os gregos tivessem regras rigorosas sobre o quanto da raiz pudesse ser extraído - o que poderia assegurar algum tipo de regeneração -, traficantes podem ter ignorado as determinações. "Se você levar a raiz, precisa de uma planta que cresça bem da semente", diz Simmonds.

A história do silphium é familiar da maneira mais triste. Nos dias de hoje, ervas medicinais fazem parte de uma indústria bilionária, mas muitas estão ameaçadas pelo extrativismo, o crescimento urbano desordenado e o aquecimento global. Apenas na África do Sul, por exemplo, 82 tipos de ervas estão na lista de espécies ameaçadas e pelo menos outras duas desapareceram.

Uma esperança no caso do silphium é que poucos estudos sobre diversidade vegetal foram feitos até hoje. É possível que algumas plantas possam ter escapado dos gregos e romanos. "A erva pode ainda estar lá, porque a Líbia não é um país fácil de mapear", explica Simmonds.

O problema aqui é que ninguém sabe realmente como a planta é, com explica Erika Rowan, historiadora da Universidade de Exeter, no Reino Unido. "Sementes de plantas como coentro e aneto já foram encontradas em sítios arqueológicos, mas ninguém até hoje encontrou silphium", diz Rowan.

Teofrasto descreveu a planta como possuidora de raízes escuras e cobertas por uma casca negra. Elas seriam compridas, do tamanho da distância entre a ponta do dedo médio e o cotovelo, o que os romanos conheciam como cúbito. O botânico dizia ainda que a planta tinha um caule oco e folhas douradas, parecidas com as do aipo.

Moedas antigas mostram a planta florida e, segundo Simmonds, ela pareceria bastante visível e facilmente percebida. Teofrasto, inclusive, comparou a erva a outra espécie, a Magydaris pastinacea, natural da Síria e das encostas do Monte Parnasos, próximo à cidade grega de Delfos. Ele definiu ambas como "arbustos sem coluna" e relacionados ao funcho.

Cientistas mais modernos acreditam que o grego podia estar certo. Eles agora acreditam que, assim como a assa-fétida, o silphium pode ter pertencido a um grupo de plantas relacionadas ao funcho, conhecido como Férula. Na verdade, são parentes da cenoura e crescem de forma selvagem no norte da África e no Mediterrâneo. Duas dessas plantas, ambas variações de funcho-gigante, ainda existem na Líbia hoje. E uma delas pode ser silphium.

Mas Rowan já avisa que, mesmo que a erva não esteja extinta, ela possivelmente não terá um revival - pelo menos no Ocidente. "Há uma série de temperos romanos, como o levístico (um parente do salsão), que eram obrigatórios à mesa em priscas eras, mas que agora são desconhecidos e praticamente impossíveis de adquirir".

E vale lembrar que a cozinha romana não era em nada parecida com a comida italiana que conhecemos. Era baseada em contrastes entre sabores doces, salgados e azedos - pense, por exemplo, em melões com molho de tripas de peixe. "Se algo era comestível, os romanos comiam."

A lista inclui, por exemplo, papagaio assado com alho-porró e uma redução de mosto de uvas - e pitadas de silphium.

É possível que jamais saibamos a verdadeira identidade da erva, mas podemos aprender com seu declínio. O último censo em Cirene mostra que muitas espécies estão desaparecendo, que a terra arável está perdendo espaço para o deserto e que a pastagem está fora de controle. O Império Romano há muito se foi, mas parece que estamos cometendo os mesmos erros.

Fonte: BBC

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Um comentário:

  1. Meu avô, e minha bisavó, que eram italianos, tinham cada um, um vaso com sílfio, só crescia uma vez ao ano, eles tinham que me afastar pq gostava de comer as flores, e eles usavam para fazer remédio.
    Mas não conseguiram cultivar por muito tempo, a planta acabou morrendo.

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