Apesar da fama acolhedora do povo brasileiro, nem todos os refugiados, exilados e sobreviventes do Holocausto foram prontamente recebidos no país. “O Brasil não tem muito o que se orgulhar do ponto de vista de uma política estatal— assim como outros países da América Latina, que fecharam as portas [para os refugiados] apesar das grandes comunidades judaicas que já existiam aqui”, afirma em uma entrevista a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, uma das principais pesquisadoras brasileiras do assunto.
A partir de 1937, o governo de Getúlio Vargas enviou circulares secretas para embaixadas brasileiras condenando a vinda de minorias perseguidas ao Brasil.
Por causa desses documentos, o visto brasileiro foi negado a aproximadamente 14 mil judeus, que muitas vezes tiveram que refazer sua rota de fuga, retornando aos locais de onde fugiam e sendo capturados nesse novo caminho.
Em 1938, por exemplo, documento abaixo, revelado pelo Núcleo de Estudos ArqShoah, grupo de pesquisa da USP sobre vítimas do Holocausto, mostra a recusa do visto brasileiro a 198 pessoas de origem semita no Consulado Geral do Brasil em Budapeste.
Mais tarde, em 1944, o governo brasileiro também ignorou um apelo do Comitê Internacional para Refugiados Políticos para salvar a vida de 10 mil crianças órfãs na França e na Hungria.
Houve, porém, alguns raros casos de brasileiros ligados ao governo que desobedeceram as ordens das circulares secretas. O embaixador do Brasil na França entre 1922 e 1944, Luiz Martins de Souza Dantas, por exemplo, concedeu cerca de 500 vistos às vítimas do Holocausto contra a vontade do governo. A funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo Aracy Guimarães Rosa — esposa do escritor Guimarães Rosa — é até hoje conhecida como o “Anjo de Hamburgo” por também ter ajudado diversas pessoas a atravessarem a fronteira da Alemanha, inclusive levando-as escondidas dentro de seu próprio carro.
Ambos tiveram as suas atitudes humanitárias reconhecidas pelo Memorial Yad Vashem, instituto israelense que mantém a lembrança de vítimas do Holocausto viva.
Há quem afirme que o Brasil demorou a entrar na guerra juntamente por não ter escolhido um lado no conflito, e isso poderia ter motivado o governo brasileiro a criar restrições a entrada de fugitivos judeus.
Conheça cinco histórias de sobreviventes do Holocausto que se radicaram aqui no Brasil:
Nanette Blitz Konig
Com 89 anos recém-completados no início de abril, Nanette ainda é convidada para participar de eventos que alertam para os perigos da intolerância. “Eu estive frente a frente com a morte muitas vezes. Numa delas, um oficial apontou uma arma para mim e minha reação foi mostrar indiferença, pois estava desnutrida, pesando cerca de 30 quilos e ainda com muitas dúvidas sobre tudo o que acontecia”, relata Nanette ao G1. “Hoje estou aqui e acho que minha indiferença tirou o prazer dele em me matar.”
Em suas palestras, também é sempre requisitada para contar um pouco sobre sua relação com uma colega de classe em especial: Anne Frank. Estudaram juntas no Liceu Judaico de Amsterdã e se reencontraram no campo de extermínio de de Bergen-Belsen, na Alemanha, onde Anne morreu.
Após o final da guerra, Otto Frank visitou Nanette no sanatório onde se recuperava de tifo, pleurisia e tuberculose. Também lhe enviou uma carta onde comentou que estava planejando publicar o diário de Anne Frank.
Depois de se recuperar, a holandesa conseguiu refúgio no Reino Unido, onde conheceu seu marido. Em 1953, ambos se mudaram para Brasil e moram até hoje em São Paulo.
Nanette se consolidou como tradutora e, em 2015, lançou um livro com suas memórias: Eu Sobrevivi ao Holocausto (Editora Universo dos Livros, 192 páginas, R$39,90).
George Legmann
George Legmann nasceu em um campo de concentração.
No dia 8 de dezembro de 1944, sua mãe, a romena Elisabeta Török Legmann, dera a luz à uma das das sete crianças nascidas no campo de extermínio alemão de Dachau, pelas mãos de um médico judeu, também aprisionado.
Hoje, George é um dos sobrevivente mais jovens que vivem no Brasil. Tudo o que se sabe sobre a sua história foi contado por sua família e checado por documentos conseguidos na Alemanha.
Antes de chegar à Dachau, a família romena foi levada para Auschwitz, onde os membros mais debilitados foram enviados direto para um crematório e sua mãe conseguiu esconder a gravidez das vistas dos nazistas. “Você não é velha e eu não estou grávida, nós
vamos caminhar para onde vai a maioria”, disse Elisabeta à sua mãe, sem imaginar que sairia viva de Dachau com o filho nos braços.
Felicia Mainemer
Assim como aqueles que ajudaram a família de Anne Frank a se esconder da Gestapo, muitas pessoas que não eram perseguidas tentaram ajudar minorias a escapar de um destino fatal. Foi o que aconteceu com Felicia Mainemer.
Acabara de perder sua mãe quando as tropas alemãs invadiram a Polônia. Era 1939 e vivia na Varsóvia como técnica dentista. Estava casada e passava por dificuldades financeiras desde que começara a tentar manter a saúde da mãe. Com a invasão, foi enviada a diversos guetos e campos de concentração, onde assistia crianças morrerem sem poder fazer nada. Soube por dois amigos que seu marido também tinha falecido.
Mas foi entre um deslocamento e outro que Eugênia Kochanovska, amiga cristã de longa data, apareceu com uma série de documentos falsos: a partir dali, Felicia poderia andar pelas ruas e trabalhar sem ser notada. No papel, era uma mulher católica. Em 1948, finalmente chegou ao Brasil.
Frida Schmuskovits
Nascida em 1922, na Letônia, Frida foi uma sobrevivente do Massacre de Rumbula, como ficou conhecido o genocídio de 25 mil judeus em uma floresta próxima a Riga, capital letã. O massacre durou nove dias e foi muito mais brutal do que a invasão do exército russo, que deixara desaparecidas diversas pessoas consideradas “capitalistas”.
Mas não se sabe como ou quando Frida chegou ao Brasil. As únicas informações catalogadas sobre ela estão em seu depoimento dado ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social), em 7 de julho de 1960. Foi nesse dia em que viu, acompanhada de sua filha de 12 anos, um dos principais algozes da Letônia andando livremente pelas ruas de São Paulo. Era Hebert Cukurs, aviador e ex-chefe de uma organização nazista, envolvido no massacre letão.
Em 2006, pesquisadores da USP descobriram que Cukurs viveu no Brasil sob a proteção da polícia de São Paulo por mais de um ano.
André Daniel Reisler
“De repente, um dia meus pais botaram duas malas na porta e saímos de casa. Não sei para onde, não tinha a mínima ideia. Embarcamos num trem e fiquei sabendo que íamos para Paris”, contou Reisler a pesquisadores do Núcleo de Estudos ArqShoah.
Naquele dia, ele havia se separado dos pais pela primeira vez. Eles haviam confiado o filho a um casal de amigos belgas que não foram barrados na fronteira com a França. O casal deixou Reisler em Paris sob os cuidados do tio.
Mais tarde, a família se reencontrou e decidiu que poderiam retornar à Bélgica. Mas, com o tempo, a discriminação recomeçou. Vizinhos denunciavam famílias judaicas e o tio de Reisler havia sido levado pela Gestapo por se recusar a usar a Estrela de Davi costurada na roupa. Nunca mais tiveram notícias dele.
Aos 10 anos, Reisler mudou de nome, cidade, escola, família, religião e documentos. “Tive que vestir uma personalidade diferente”, como ele mesmo definiu, alé de se esquivar das perguntas de outras crianças, que percebiam tudo.
Com o final da guerra, aos poucos a família foi se reencontrando. Seu pai havia fugido para a Suíça e teve que voltar para a Bélgica de bicicleta. Demorou dois meses para completar o trajeto e se integrar novamente à família.
Chegou em São Paulo no dia 15 de agosto de 1951, com medo de outra guerra. A pedido do pai, Reisler migrou para que não fosse convocado pelo exército belga para servir a outra catástrofe: a Guerra da Coreia.
Fonte: Galileu
Quando amanhecer, você já será um de nós...
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