Casas são nossos refúgios e nos dão proteção. Mas nossas casas também são cúmplices das nossas histórias, sejam elas boas ou más. Há quem acredite que tais energias podem impregnar casas ao longo dos anos, e assim confidenciar a certas pessoas alguns segredos guardados entre suas paredes.
Escrevi o conto abaixo a muitos anos, antes mesmo de eu pensar em escrever um blog. Ele foi originalmente publicado em uma comunidade do finado Orkut como parte de um concurso de contos. Admito que ele não fez grande sucesso na época, e com certa razão, mas dias atrás remexendo alguns documentos de texto que tenho no meu computador acabei encontrando esse singelo conto, e decidi dar a ele a chance de ver a luz do dia novamente. Convido os amigos e amigas a conferirem essa estória, um tanto óbvia e insonsa, que tenta humildemente explorar os terrores de uma casa antiga.
O telefone toca, acordo assustado e olho para o relógio que descansa sobre o criado mudo, o brilho vermelho dos números ofusca meus olhos, alguns segundos depois os borrões vermelhos desenham os números 03:15.
Ligo a luz do abajur. - Maldição. – sussurro eu, levantando-me da cama para atender o maldito telefone, que insiste em gritar desesperadamente. Tenho que ser rápido e silencioso, não quero que o telefone acorde meu filho, já que nas ultimas semanas ele tem tido serias dificuldades para dormir. Aparentemente ele esta sofrendo com pesadelos. Coisas da idade. Essa é a primeira noite no ultimo mês, em que eu e Rachel não o temos como hospede em nosso quarto.
Visto o roupão sobre meu corpo nu, tento localizar meus chinelos, certamente estão sob a cama, não há tempo, sigo descalço até a porta do quarto, que cede à minha pressão abrindo – se silenciosamente. O telefone parece ter ganhado ainda mais fôlego. Chegando no corredor finalmente alcanço o aparelho.
- Alô. – falo eu sem o menor vestígio de simpatia na voz, afinal essa ligação provavelmente é algum engano.
- Senhor Luis Henrique Camargo? – pergunta-me uma voz feminina. Infelizmente não se trata de engano.
- Ele mesmo, quem está falando?
- O senhor é proprietário de uma casa situada na Rua João Pedrosa, número 23, no bair...
- Sim. – respondo com irritação, interrompendo o restante da frase.
- Sou a oficial Joana. Sou da policia e alguns moradores das proximidades relataram distúrbios no local, mandamos uma viatura para o endereço, e os policiais comprovaram que ocorreu um assassinato na residência, estamos aguardando o senhor com urgência no local.
- O que tenho a ver com isso?
- Desejamos que o senhor compareça a cena do crime para prestar esclarecimentos.
- Não tenho o que esclarecer.
- O senhor é dono da residência, onde houve um crime, é de suma importância que o senhor compareça ao local.
- Certo, estou indo para lá.
- Obrigada. Tenha uma boa noite senhor.
Bato o telefone contra o gancho e me ponho a caminhar em direção do quarto. Entro e vejo Rachel, dormindo como se nada tivesse acontecido. Sento – me ao seu lado na cama e afago-lhe os cabelos morenos uma dezena de vezes, fazendo-a acordar.
- O que você faz acordado querido? – me pergunta ela como quem ainda está meio dormindo. Levanto – me da cama para me vestir.
- Querida você não ouviu o telefone tocando?
- Não, quem era?
- Recebi uma ligação da policia, e preciso ir até a antiga casa da minha família, segundo a policial houve um crime no lugar, e eles me aguardam para me fazer algumas perguntas.
- Nossa! Você quer que eu vá com você?
- Não meu bem, fique em casa com Thiago, se eu precisar de algo eu ligo. Não há com o que se preocupar, provavelmente alguns moradores de rua fizeram daquela casa seu lar, acredito que o problema tenha sido entre essas pessoas.
- Mas se precisar de advogada, pode chamar, não vou cobrar os honorários extras de você, mesmo tendo que te atender de madrugada. – Rachel me fala isso com um sorriso, ao mesmo tempo bobo e provocativo, nos lábios.
- Eu ligarei se for preciso.
Depois de um beijo, deixo minha esposa dentro da garagem vestida com seu hobby cor de rosa. Posso observar a porta da garagem se fechando, encobrindo o seu corpo, pouco a pouco, até restar apenas o chinelo de pelúcia também cor de rosa. Somente depois de que a luz da garagem se apaga sigo meu caminho.
Chove muito, o suficiente para o limpador de para brisa funcionar na velocidade máxima. Serão 30 minutos dirigindo até a casa onde vivi parte da minha infância. Minha trágica infância.
Eu tinha a idade de meu filho, sete anos, quando estivera naquela casa pela ultima vez. Era uma sexta feira à noite e eu já estava em minha cama, porém não conseguia dormir, meus pais brigavam no andar de baixo. Em certo momento ouço meu pai dizendo que iria sair, ouço o forte som de seus passos no assoalho de madeira da sala de estar em direção à garagem. Longos minutos de silencio. Eu já estava adormecendo, quando o silencio é quebrado pelo estampido do disparo de arma de fogo, assustado deito-me debaixo de minha cama. Ouço passos, dessa vez em direção a cozinha. Mais alguns minutos se passam e ouço mais um disparo. Agora o silencio é total, eu deitado sob a cama, tremendo de frio e medo.
Depois de horas deitado em minha fortaleza infantil, encho – me de coragem e resolvo ir para o andar debaixo. Saio do meu quarto, lentamente. Desço os degraus da escada apoiado no corrimão, nunca levara tanto tempo pra descer aquelas escadas. Ao chegar à sala vejo minha mãe sentada na sua cadeira favorita, com sua revista de fofocas sobre o colo, e com um buraco na testa. A parede atrás dela pintada com um borrão disforme numa tonalidade de vermelho meio amarronzada. Começo a gritar e corro para a cozinha, onde meu pai está sentado em uma poça de sangue, defronte a geladeira, na mão direita uma arma e na esquerda uma garrafa de bebida. Saio correndo de casa aos gritos, para nunca mais voltar a botar os pés lá.
Tempos mais tarde descobri que meus avós paternos haviam morrido nas mesmas circunstancias, na mesma casa. Depois de uma discussão meu avô matara minha avó com um machado e depois cometera suicídio se enforcando na sala de estar. Segundo minha tia Sofia, foi meu pai que encontrou os corpos. Ele tinha na época menos de 10 anos de idade.
Fui criado pela irmã de minha mãe, tia Sofia, cursei faculdade de Odontologia, e foi na faculdade que conheci minha esposa, que cursava direito. Ha cerca de quatro anos tia Sofia falecera. Ela tivera dois filhos, Raul e Rafael, crescemos como irmãos. O marido de tia Sofia havia morrido antes de eu ir morar com eles, não me lembro dele, pois até antes da morte de meus pais não tínhamos muito contato. Tia Sofia foi uma guerreira, criou dois filhos e um sobrinho, tinha em mãos a parca pensão que o marido deixara, e um emprego na fabrica de biscoitos, que ficava no inicio da rua onde morávamos. Ela deu todas as condições para que estudássemos, e tivéssemos uma boa infância. Infelizmente toda pessoa, por mais brava e guerreira que seja, encontra um adversário maior na vida, no caso de tia Sofia, um câncer nos pulmões. O cigarro que a acompanhara por toda a vida adulta, era tido como o culpado pelos médicos.
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A chuva continua castigando, e quando chego ao local, não avisto nenhuma viatura de policia, porém posso ver, através das fendas nas janelas, luz dentro da velha casa. Suponho serem as lanternas dos policiais, afinal a muitos anos não há nem luz, nem água, tampouco móveis no interior do lugar. Estaciono meu carro defronte o portão e respiro fundo, como se isso fosse afastar de mim os fantasmas da minha infância, ou me encher de coragem. Saio do carro e parto em disparada, rumo à varanda de entrada da casa. Atravesso o longo quintal, que outrora fora bonito e vistoso, e hoje apenas um matagal. Escorrego algumas vezes, mas chego à varanda, um tanto molhado e sujo de lama. A madeira começa a ceder sob meus pés, respiro fundo novamente e empurro a porta, ela geme lentamente, deixando escapar claridade, entro rapidamente fechando a porta por detrás de mim. Não vejo nenhum policial.
Dentro da casa olho atônito para tudo, está tudo lá, tal como o dia em que sai aos gritos daquele lugar. Sinto minhas pernas fraquejarem, apoio-me na parede, é quando vejo parada na entrada da cozinha a figura de minha mãe. Ela esta tal como no dia em que meu pai a matara, com a mesma roupa, e com o mesmo buraco na testa.
- Querido venha cá, nosso pequeno Luizinho voltou para casa. – Ouço a criatura falar isso com a voz tal como eu lembrava, ser a voz de minha mãe, suave e macia. Nesse momento a figura de meu pai desce as escadas com passos firmes e pesados soando no assoalho como trovões no céu.
- Luizinho você voltou meu filho, como estou feliz em ter você aqui. – Prossegue a minha mãe.
- É claro que ele voltaria mulher, eu sempre disse que ele voltaria. – Fala meu pai, com o tom ríspido e autoritário de sempre, sua voz meio rouca, como se sempre estivesse com catarro preso na garganta.
- Por que não trouxe minha nora e meu neto filho, estou doida para conhecê-los.
- Vocês não deveriam estar aqui. – balbuciei eu, ainda duvidando que de tais eventos estivessem de fato acontecendo.
- Olha garoto, eu e sua mãe estamos aqui para te lembrar das suas obrigações familiares...
- Paulo, por favor, nosso filho acaba de regressar depois te tanto tempo, deixe ele se sentar, depois falamos dessas coisas. – interrompe minha mãe, com um semblante sereno de sempre.
- Que obrigações? – pergunto eu com um aperto no coração. E com a cabeça a ponto de explodir.
- Temos uma tradição a seguir, ela começou com teus avós, e que eu e tua mãe demos sequência. – nesse momento posso perceber mais atrás outras duas figuras, que imaginei serem meus avós.
Meu pai segue com os olhos firmes em mim e com a mão direita ele simula uma arma e aponta a mesma pra cabeça de minha mãe.
Bang.
- Jamais! Amo minha esposa, amo meu filho, isso nunca vai acontecer. Jamais farei com ela o que você fez a minha mãe. – falo dirigindo-me a figura de meu pai, em seguida dou as costas a ambos me dirigindo a porta, giro a maçaneta e aplico força a mesma, porem a porta não se move.
- Garoto você pensou que seria assim tão simples sair daqui. Nós sabíamos que você não gostaria muito da ideia a principio, por isso temos um plano B. – ouço a voz de meu pai, e assim que me viro para onde ele estava, sou atingido na cabeça por algum objeto, as imagens se embaralham, sinto meu corpo atingir o chão, apago.
Acordo tempo depois com o rugido de um trovão, minha cabeça dói, estou em um lugar escuro, deteriorado, sem moveis, cheirando a mofo e a urina. Estou de fato na casa de meus falecidos pais, na casa real. Tento me convencer que os eventos de antes foram apenas minha imaginação, talvez tenha entrado na casa e tenha sido atingido por alguém, ou um pedaço do teto que viera a baixo, e que o dialogo com meus finados pais, tenha sido fruto da minha imaginação, quem sabe um sonho. A versão é boa, começo a rir dela enquanto viro meu corpo em direção à porta. Quando estou a dois passos da porta a mesma se abre e para meu susto por ela entra minha esposa e meu filho.
- Rachel o que faz aqui? – pergunto aos gritos, enquanto meu coração acelera de maneira descomunal, fazendo com que eu possa senti-lo bater numa veia localizada na testa.
- Você me ligou do seu celular pedindo para que eu viesse até aqui, que você precisava de mim.
- Mas eu não liguei para você. – Olho apavorado para minha esposa, quando podemos todos ouvir a porta ranger e bater.
Passo pela minha esposa e me ponho a forçar a porta, sem sucesso. Rachel e Thiago movimentam-se pelo lugar, saindo do meu campo de visão, mas posso ouvir seus passos.
- Fiquem perto de mim. – grito desesperado.
- Fique calmo querido, estamos aqui.
Minha esposa mal havia terminado a frase e um relâmpago ilumina toda a casa, em especial a cozinha. Nesse momento lembro-me da porta dos fundos, e quando penso em caminhar para lá ouço o grito estridente de minha mulher, em seguida Thiago. – Papai, papai, papai. Não consigo vê-los. Não ouço mais Rachel, apenas Thiago, ele grita como que se estivesse se afastando de mim. – Papai, papai, papai. Tento correr, mas algo me segura pelo braço, sinto algo ser colocado em contado com minha mão, nos susto seguro firme o objeto, tateio com os dedos tentando identificá-lo, imagino ser o cabo de uma faca, o objeto esta coberto de um líquido quente e pegajoso. Mais um relâmpago estoura, iluminando o ambiente, o suficiente para eu ver que o objeto de fato é uma faca e que o liquido gosmento tem uma cor vermelha, vermelho sangue. Tento soltar a faca, mas não consigo abrir minha mão, como se alguém estivesse com suas mãos envolvendo a minha, uma brisa gelada toca minha orelha esquerda.
- Pronto filhinho, eu e seu pai demos uma ajudinha, cabe a você seguir a tradição da família, pois apenas seguindo as tradições que a gente mantém a família unida.
Muito interessante a história. Poderia de fato fazer alguns reparos, mas gostei muito. :) Sou leitora assídua do seu blog, entro nele toda noite, ele me distrai no trabalho. E quando acordo já sou uma de vcs.. Continue escrevendo :)
ResponderExcluirMuito grato amiga...é sempre bom ter esse retorno da galera que acessa o blog...
ExcluirHá anos leio as estórias aqui publicadas. Fico feliz que não tenha desistido. Vejo que você se mantém firme no teu propósito e continua dando vida ao blog. Tenha um feliz natal você e tua família!!!
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