Os mistérios do Santo Graal

em 12/07/2017


Perseguido e sentindo a morte iminente, um camponês judeu decidiu celebrar o Pessach, a páscoa judaica, com os amigos. Reuniu os 12 mais próximos e, na festa, serviu-lhes pão e vinho. Dividiu o pão, comeu um pedaço e distribuiu o restante para os convidados. “Tomai e comei, isto é o meu corpo”, disse. Encheu um cálice com a bebida, deu o primeiro gole e passou a taça adiante, pedindo: “Bebei dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado por muitos para a remissão dos pecados”.

A última ceia da vida de Jesus, que morreria no dia seguinte, é hoje a base da celebração cristã da Eucaristia. Sem muitos detalhes, ela foi assim descrita nos evangelhos de Lucas, Mateus e Marcos na Bíblia. E a taça em que ele bebeu com os apóstolos passou de coadjuvante na refeição ao papel principal de um ciclo de lendas que nasceu na Idade Média e perdura até hoje.

O mito do Santo Graal refere-se, na maior parte das vezes, ao cálice da Última Ceia. Mas as inúmeras lendas criadas em menos de um milênio já descreveram o artefato como a tigela em que Jesus teria cortado o pão na mesma celebração. Em outros escritos, o Graal seria o prato em que um seguidor teria recolhido o sangue de Jesus crucificado, uma vasilha ou uma pedra. Há ainda autores que até acrescentaram elementos da mitologia pagã celta para criar sua própria lenda sobre o Graal.

No meio desse monte de histórias, o que se sabe ao certo é que o mito do Santo Graal foi criado por volta de 1180 por um francês chamado Chrétien de Troyes. Ele foi o primeiro a escrever sobre o artefato que chamou de “graal”, palavra que designava um tipo específico de utensílio de mesa que, até então, não possuía qualquer conotação sagrada. Mais: incorporou o objeto à lenda dos cavaleiros. Algumas vasilhas antigas até chegaram a ser veneradas pelos cristãos como a taça de Jesus, mas nenhuma atraía multidões de peregrinos nem tinha fama mundial.

Taça simples

As mais antigas sementes da lenda do Graal estão na Bíblia, embora em nenhum momento o termo seja usado. A taça da Última Ceia, por exemplo, é mencionada nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. Historiadores afirmam que o mais provável é que os utensílios usados naquela refeição fossem simples, feitos de cerâmica ou madeira, já que eram assim os pratos e copos usados pelas camadas populares da Judeia na época. Dessa forma, é bastante improvável que os apetrechos usados na Última Ceia tenham sido preservados.

O cálice de um carpinteiro

Que tipo de taça um sujeito pobre da Galileia usaria?

​Os filmes do herói Indiana Jones estão cheios de cenas antológicas. Uma das melhores talvez esteja no longa de 1989, Indiana Jones e a Última Cruzada. Nele, o personagem vivido por Harrison Ford descobre a chave para escolher o verdadeiro Graal. A taça certa, percebe ele, é “o cálice de um carpinteiro”, e não as vasilhas suntuosas que estão por ali. Poucas décadas antes do nascimento de Jesus, a Palestina virou um centro importante de produção de vasilhas de vidro, muitas das quais com formato parecido com o de um cálice de vinho moderno. Mas, como esse tipo de recipiente tinha grande aceitação nos meios não-judaicos, é possível que um judeu devoto como Jesus não aprovasse a moda. Nesse caso, as melhores pistas podem vir do sítio arqueológico de Qumran, na região do mar Morto. Muitos pesquisadores acreditam que no lugar moravam membros da austera seita judaica dos essênios, até o ano 70. Entre eles, parece ter predominado o uso de taças simples de cerâmica, sem alças. “O material de Qumran é bem próximo de Jesus espacialmente e temporalmente”, diz Francisco Marshall, da UFRGS.

Além disso, os próprios Evangelhos dizem que o salão onde a refeição aconteceu foi apenas emprestado a Jesus e seus discípulos. E o hábito de guardar ou procurar “relíquias” das grandes figuras do cristianismo só surgiria bem mais tarde, cerca de um século após a morte de Jesus. Para André Chevitarese, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que estuda as evidências históricas sobre a vida de Jesus, é bem possível que nenhum artefato arqueológico diretamente ligado a ele tenha chegado até nós. “E o mesmo vale para quase toda a primeira e a segunda geração de cristãos. Eram pessoas periféricas, gente muito simples, de origem rural”, diz o pesquisador.

A falta de objetos diretamente ligados a Jesus e aos apóstolos incomodava um bocado os cristãos, mas o próprio texto do Novo Testamento não ajudava muito: as narrativas eram secas, com poucos detalhes. “Insatisfeitos, os cristãos de séculos posteriores começaram a produzir versões mais elaboradas dos Evangelhos”, diz o medievalista britânico Richard Barber, autor do livro O Santo Graal – A História de uma Lenda. Assim surgiram alguns dos chamados evangelhos apócrifos, textos que não foram incluídos na Bíblia canônica (ou “oficial”). Apesar disso, alguns deles faziam grande sucesso, como o Evangelho de Nicodemos, escrito no fim do século 4. O relato dá mais detalhes sobre o papel do judeu José de Arimateia, que teria recolhido o sangue de Jesus crucificado em um prato e também retirado o corpo dele da cruz e dado ao morto um enterro digno. O Evangelho de Nicodemos narra ainda como um soldado romano, de nome Longino, teria perfurado o tórax de Jesus com uma lança (episódio descrito de forma mais breve no Novo Testamento). Para Barber, esse livro apócrifo ajudou a estruturar a lenda do Graal. Como veremos a seguir, a lança de Longino é um dos objetos que “acompanham” o objeto sagrado nas histórias escritas na Idade Média.

Prato fundo

A pioneira dessas histórias, um poema inacabado de Chrétien de Troyes, levava o nome de Percival ou O Conto do Graal. A obra de Chrétien (coincidência ou não, o nome quer dizer “cristão” em francês) já era um sucesso de público e crítica quando ele começou a trabalhar na nova história – entre outras coisas, ele já havia escrito um livro com as aventuras de sir Lancelote na Távola Redonda. A ambientação do novo livro retomava a famosa corte do lendário rei Arthur e as aventuras vividas por seus cavaleiros.

Ao enviuvar, a mãe do herói Percival decidiu criar o filho longe da civilização, de forma que o rapaz se tornou uma espécie de “bom selvagem”, com dificuldade de entender como a sociedade funcionava. Percival acabou encontrando alguns cavaleiros de Artur na floresta e ficou tão fascinado com eles que decidiu tornar-se um também. A mãe o deixou partir, ele arranjou um mentor e, depois de treinado, saiu pelo mundo em busca de aventuras. Em dado momento, chegou ao castelo de um tal Rei Pescador, que o convidou a se hospedar lá. Percival acabou presenciando o que Chrétien chamou de “procissão do Graal”: pessoas carregando uma lança de cuja ponta caem gotas de sangue, candelabros e, finalmente, “um graal” – vale notar que o autor usa a palavra de forma genérica, “um” graal, não “o” graal.

“Não se trata de um cálice”, afirma José Rivair Macedo, especialista em história medieval da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A palavra mais correta para designar o objeto em português provavelmente é escudela”, diz, referindo-se a uma espécie de prato fundo, aparentemente usado na Idade Média. Nas escudelas eram servidos peixes e carnes – e, no poema, “em vez de carregar salmão” ou outros peixes, o Graal transportava uma hóstia, levada até o pai do Rei Pescador, que se encontrava gravemente ferido.

A partir daí as coisas ficam cada vez mais misteriosas. Percival ficou intrigado com a procissão do Graal, mas não perguntou ao seu anfitrião o significado de tudo aquilo, pois seu mentor ensinara que um cavaleiro não deveria ser indiscreto. Só que o jovem nobre aparentemente é punido por ter ficado de boca fechada: acordou sozinho no dia seguinte e o castelo estava misteriosamente vazio. Percival vagou por algum tempo, até perder a memória. Finalmente, foi socorrido por um eremita, que explicou (bem, mais ou menos) o que estava acontecendo. O sujeito disse que tanto ele quanto o pai do Rei Pescador eram tios maternos de Percival. Também afirmou que o Graal era “uma coisa muito santa” (tante sainte chose, em francês da época) e que, se Percival tivesse perguntado o significado da misteriosa cerimônia no castelo, teria evitado muitas desgraças. E, de repente, o manuscrito acaba – provavelmente o autor morreu antes de concluir a história.

É bastante possível que a ideia do Graal como sendo o cálice da Última Ceia não tivesse nunca passado pela cabeça de Chrétien. “A minha impressão é de que o autor não pretendia abordar a temática religiosa, mas a questão secular da formação do cavaleiro. Isso está implícito na ideia de que Percival, por ter sido criado longe de tudo, não tem a justa medida das coisas e confunde a necessidade de ser discreto com ficar totalmente calado”, diz Macedo. “Mas a referência ao Graal como tante sainte chose abriu um mundo de possibilidades para os escritores que vieram depois.”.

Mitologia celta

Acredite: a expressão “um mundo de possibilidades” não tem nada de exagerada. Ninguém sabe ao certo como Chrétien pretendia terminar sua história, mas o fato é que, apenas meio século após a morte do autor, haviam surgido nada menos que 18 continuações, prólogos ou novas versões da história do Graal – um novo livro a cada 2,7 anos, em média. A maioria dos novos textos foi escrita em francês, mas há também obras em alemão, e não demorou muito para que surgissem traduções para outras línguas europeias, como o italiano e o português arcaico, ancestral do nosso idioma.

O mito só fez crescer – e adquirir características completamente distintas – em meio a todos esses textos. Segundo Richard Barber, escritores que vieram depois de Chrétien, como Robert de Boron e o autor anônimo de A Demanda do Santo Graal, fizeram uma espécie de equação entre a lança que sangra (um bocado parecida com a lança de Longino, aquela do Evangelho de Nicodemos) e o Graal que carrega a hóstia. E concluíram que, na verdade, o recipiente só podia ser o prato (ou o cálice) sagrado.

Assim, os sucessores de Chrétien conseguiram uma façanha inédita: juntaram a famosa saga da lendária corte do rei Artur, a mais popular da época, com o lado religioso e místico que também encantava o público medieval. Para chegar a esse objetivo, cada autor adotou uma solução diferente. A mais famosa envolveu criar um novo herói da Távola Redonda: surgiu então Galahad, filho de Lancelote, um jovem cavaleiro casto e puro. Na maioria dos casos, Galahad, Percival e Bors (outro cavaleiro da corte de Artur), juntos, comprometem-se a encontrar o Graal para curar o pai do Rei Pescador e o próprio rei (que se machuca em versões posteriores do conto) e para atingir a iluminação.

Por um lado, a lenda parece ter crescido incorporando alguns elementos das antigas mitologias pagãs europeias, em especial a celta. Quando o Graal aparece misteriosamente, nos novos contos pós-Chrétien, é capaz de alimentar todos à sua volta com os pratos mais saborosos. “O chamado caldeirão da abundância de alguns deuses celtas também era capaz disso”, afirma o medievalista Macedo.

No entanto, a simbologia mais forte das histórias do Graal está mesmo diretamente ligada à ideia de que a hóstia e o vinho transformam-se no corpo e no sangue de Jesus – conhecida como Eucaristia. Na versão de A Demanda do Santo Graal, Galahad e seus companheiros, quando finalmente acham o misterioso artefato, são recepcionados numa missa celebrada pelo bispo Josefo, filho de José de Arimatéia. Quando Josefo ergue a hóstia consagrada, eles vêem o corpo de um bebê que representa Jesus. Galahad morre depois de contemplar os mistérios do Graal, e o cálice volta ao céu junto com a alma do cavaleiro.

Sangue de Jesus

A popularidade das lendas do Graal foi muito grande até o fim do século 15, mas sofreu um revés secular com o avanço da Reforma Protestante, que tendia a ridicularizar a velha paixão medieval por relíquias sagradas e milagres. Mas, por volta dos séculos 18 e 19, as antigas teses foram retomadas e o interesse pelo Graal voltou a ressurgir.

Em 1802, um acadêmico de Viena foi o primeiro a juntar o artefato aos cavaleiros templários, ordem criada pelo papa Urbano II no início do século 12 para proteger os cristãos que peregrinavam para a Terra Santa. Segundo a nova tese, Percival estava ligado à Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão. Depois dele, muitos outros autores embarcaram na história.

Para chegar a essa associação, os escritores embasaram-se em uma antiga versão da lenda do Graal, datada do século 13 e de autoria do poeta alemão Wolfram von Eschenbach. Em Parzival, o Graal, descrito como uma pedra, é guardado pelos misteriosos “templeisen”. Embora o nome pareça, esses guerreiros não seriam, para o poeta alemão, os membros da Ordem do Templo: a palavra usada em alemão para templários é tempelherren. Além disso, os templários reais eram monges, enquanto os de Wolfram von Eschenbach casavam-se. Mesmo assim, as versões posteriores passaram a fazer relação entre os dois grupos.

Von Eschenbach também inspirou outras obras. Caso do compositor alemão Richard Wagner: com base no poeta medieval, ele criou sua última ópera, Parsifal, terminada em 1882. No mesmo século, com o ressurgimento do interesse no artefato, os arqueólogos, baseados em técnicas mais avançadas, resolveram começar a caçar o tal tesouro. Afinal, se conseguiram até localizar a antiga Troia, não seriam capazes de descobrir o Graal também?

Nesse quesito, porém, é claro que as decepções foram se acumulando. Foi descoberto, por exemplo, que dois dos supostos “graais”, guardados como relíquias em igrejas de Gênova, na Itália, e Valência, na Espanha, provavelmente haviam sido feitos no Oriente Médio, só que na Alta Idade Média. No começo do século 20, o chamado Cálice de Antioquia, descoberto na Síria, chegou a ser considerado o Graal, até que análises mais cuidadosas mostraram que se tratava de... uma lâmpada a óleo.

Junto com a revolução científica moderna, paradoxalmente, muitas seitas esotéricas passaram a adotar o Graal como objeto de estudo. Os membros da obscura Ordem da Aurora Dourada, por exemplo, acreditavam que as histórias do Santo Graal eram uma espécie de mensagem em código sobre “os verdadeiros segredos místicos” da fé cristã. A versão mais recente desse fenômeno é a teoria dos escritores Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln exposta em O Santo Graal e a Linhagem Sagrada. Segundo o livro, o San Greal, usado por autores franceses medievais em referência ao Graal, na verdade é uma corruptela de sang real, “sangue real” em francês antigo. Os autores vão mais longe: esse seria o sangue dos supostos descendentes que Jesus teria tido com Maria Madalena.

Já ouviu uma história parecida? Provavelmente porque o livro inspirou O Código Da Vinci, de Dan Brown. Que alimentou as teorias das conspirações nas bolhas da internet pelo mundo.

As grandes relíquias religiosas

O interesse por restos mortais, roupas e outros artefatos ligados a Jesus, a Maria e aos santos deu margem a uma indústria medieval de relíquias. Documentos do fim da Idade Média sugerem a existência de até 18 diferentes prepúcios de Cristo (como bom judeu, Jesus foi circuncidado). Locais tão distantes quanto a Armênia e a Alemanha afirmavam possuir a lança que perfurou o tórax de Jesus durante seu suplício. E a quantidade de supostos vestidos de Maria certamente não se encaixa com as posses de uma camponesa de Nazaré. As relíquias medievais eram famosas não apenas por seus poderes curativos, mas também pela proteção que concediam. Muitos exércitos carregavam-nas ao partir para a batalha. Alguns artefatos religiosos viraram ícones tão fortes que muitos eram incapazes de aceitar que eles talvez estivessem perdidos para sempre – ou mesmo nunca tivessem existido. Conheça sete das relíquias cristãs mais famosas do mundo – algumas ainda procuradas, outras que se acreditam serem as verdadeiras.

  • Coroa de Espinhos: O primeiro registro da veneração da coroa que Jesus teria usado data do século 5 – igrejas de Jerusalém exibiam a relíquia. Seis séculos depois, com a chegada dos cruzados ao Oriente Médio, o objeto foi parar na França. Hoje, é abrigado na catedral de Notre Dame, em Paris – com pedaços na Espanha, na Itália, na Alemanha.
  • Vera Cruz: Helena, mãe de Constantino, primeiro imperador romano cristão, teria ido até a Palestina em 312 e desencavado o pedaço de madeira onde Jesus foi crucificado. Ao longo do tempo, a Vera Cruz (“cruz verdadeira”) foi desmantelada em pedacinhos que hoje estão na Espanha, na Grécia, na Bélgica e na França.
  • Reis Magos: Na catedral de Colônia, na Alemanha, um rico sarcófago triplo, segundo o mito, abriga os restos mortais dos Três Reis Magos, que presentearam Jesus em seu nascimento. Como os ossos só chegaram a Colônia em 1164, é pouco provável que realmente pertençam ao trio.
  • Santo Sudário: O pano de linho que teria envolvido o corpo de Jesus sepultado foi submetido a uma datação que revelou que sua idade não ultrapassa os 700 anos. Físicos investigam se uma contaminação rara pode ter gerado um erro de data do objeto, conservado na catedral de Turim, na Itália.
  • Arca da Aliança: A caixa de madeira folheada a ouro guardava, segundo a Bíblia, as tábuas de pedra com os Dez Mandamentos, além de possuir poderes. Oficialmente, ela desapareceu ou foi destruída com a queda de Jerusalém em 586 a.C. No entanto, uma igreja da Etiópia diz abrigar o artefato. Mas ninguém pode vê-lo.
  • Pegada de Maomé: A mais rica coleção de relíquias muçulmanas está no museu do palácio Topkapi, em Istambul. Além de objetos ligados a personagens bíblicos, o museu abriga até uma suposta pegada do profeta Maomé, o fundador do islamismo.
  • Arca de Noé: No fim do século 19 e começo do século 20, virou mania vasculhar as montanhas do nordeste da Turquia, em especial a região do monte Ararat, em busca do gigantesco barco que Noé teria, segundo a Bíblia, usado para salvar os bichos do dilúvio por volta do ano 4000 a.C. Por enquanto, porém, a arca não foi achada.
By: Elson Antonio Gomes

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