Ossadas encontradas em obra do metrô reacendem mito de valas de peste negra em Londres

em 25/01/2017

Muitos acreditam que Metrô de Londres fez desvios para evitar os chamados "poços da peste"
Quando a peste bubônica atingiu Londres, no ano de 1665, não foi a primeira vez que a doença aterrorizou a cidade. Mas foi um dos mais mortíferos surtos - e, possivelmente, um dos mais notórios.

Há muito tempo acredita-se que vítimas da doença estejam enterradas em Londres, no caminho dos trens do metrô. Mas foi apenas recentemente que a ciência confirmou isso.

A epidemia de peste bubônica arrasou a Inglaterra do século 17. Apenas em Londres, calcula-se que ela matou cerca de 100 mil pessoas, o equivalente a 20% da população da capital. Relatos populares da doença descrevem seu horror em detalhes. E também a existência de valas comuns, conhecidas como os "poços da praga", e cuja existência teria se multiplicado pela cidade. Centenas de corpos podem ter sido enterrados apressadamente em cada um desses pontos, sem direito a caixões ou funerais.

Duzentos anos mais tarde, mais precisamente em 1863, Londres abriu sua primeira linha de metrô - e também a primeira do mundo. No final do século 19, uma verdadeira teia de aranha de trilhos ligava estações tão distantes como Bank e Shepherd's Bush ou Hammersmith e Mansion House. Quem olha para essas rotas vai perceber algo estranho. Elas não fazem o caminho mais direto entre A e B. Em vez disso, elas serpenteiam. É como se tentassem evitar alguma coisa. Não demorou muito para que se ligassem os pontos.

A história diz que, quando engenheiros começaram a traçar o percurso das linhas férreas subterrâneas, eles tentaram evitar os "poços da praga" - ou porque não queria perturbar os mortos ou porque havia restos mortais demais acumulados para possibilitar a escavação de túneis. Diversas fontes de pesquisa suportam esse argumento. Em seu livro Necrópole: Londres e Seus Mortos, publicado em 2006, Catharine Arnold diz que escavações para a linha Piccadilly, por exemplo, depararam-se com uma vala comum tão densa que o traçado entre Knightsbridge e South Kensington foi feito em curva, em vez de reto.

Como explicar o fato de o mapa do metrô serpentear:
Um mapa dos "poços da praga" criado pelo grupo Historic UK - bastante usado como referência por jornais britânicos como Daily Mail e Telegraph - diz que uma linha de trilhos para manobras em Elephant & Castle é bloqueada por um "poço" desses, e que as obras para a linha Victoria Line atravessaram outro sob Green Park. "O sistema de metrô atravessa vários cemitérios e poços de praga", disse o conhecido biógrafo e autor Peter Ackroyd em seu livro London Under, de 2012.

Mas será que as ossadas realmente afetaram o desenho do metrô? É provável que não.

Muitos historiadores especializados no sistema de transporte de Londres dizem nunca ter encontrado menções às valas comuns. "Em todo meu trabalho, jamais encontrei evidências de que os 'poços da praga' tenham influenciado as obras do metrô", diz o historiador Mike Horne. Scott Wood teve a mesma conclusão. "Entrei em contato com os arquivos da Secretaria de Transporte de Londres e fui informado de que não havia qualquer referência específica às valas comuns", diz Wood, autor de um livro especializado em lendas urbanas de Londres.

E mais: com exceção de documentos ligados à construção da estação ferroviária de St. Pancras, em 1860, especialistas jamais encontraram menções a restos mortais humanos em pesquisas sobre a construção do metrô. "Nunca me deparei com histórias sobre corpos ou esqueletos", diz o jornalista e pesquisador Christian Wolmar.

Os especialistas explicam que as curvas nos trilhos não são um desvio de "poços de praga", mas resultam de uma questão de custo. A construção das primeiras linhas de metrô exigiu uma imensa desapropriação - em 1860, por exemplo, a companhia Metropolitan Railway comprou e demoliu pelo menos mil casas para fazer a ligação entre King's Cross e Farringdon.

Custo de desapropriações parece ter influenciado muito mais a construção das linhas do metrô do que ossadas
Como resultado, sempre que possível, as empreiteiras escavavam terrenos públicos. Isso já serve para esvaziar bastante as teorias mais radicais para explicar o desenho das linhas do metrô. O exemplo de South Kensington-Knighstbridge é explicado muito mais pelo traçado da via pública Brompton Road do que possíveis valas comuns.

Mas como explicar as menções feitas por Catharine Arnold? "É anedótica. Foi um ex-namorado que me contou", diz ela.

Analistas dizem ainda que seria estranho que a Piccadilly Line fosse encontrar algum "poço da praga". Uma das últimas linhas a serem construídas, ela foi escavada mais fundo que as primeiras, percorrendo trechos de pelo menos 12 m a 25 m de profundidade. Isso fica em uma profundidade bem maior que muitas supostas valas comuns. "A noção de que uma linha seria desviada por causa de uma vala comum me parece um pouco idealista demais. O mais provável é que as obras simplesmente tivessem passado por cima de tudo", afirma o historiador especializado em arquitetura urbana David Long.

Em uma análise dos arquivos do Museu do Transporte de Londres, é possível encontrar menções sobre descobertas de restos humanos, mas não de vítimas da praga. Em 1992, 160 esqueletos, a maioria deles de mulheres e bebês, foram removidos de um cemitério do século 19 durante as obras de extensão da linha Jubilee. Dois anos mais tarde, 647 túmulos foram escavados quando obras para a construção de um depósito de trens em Stratford toparam com o cemitério da Abadia de Saint Mary, que tinha sido demolida no século 16.

Mas o que dizer dos primeiros dias do metrô? Em um livro de 328 páginas sobre os debates parlamentares envolvendo as obras do metrô no século 19, há um trecho que se refere à descoberta de restos mortais durante a construção do trecho da linha Metropolitan entre Paddington e King's Cross, em 1862. "Muito da escavação foi feito em meio a poeira e detritos de eras passadas, que, em alguns pontos, estão a 8 m de profundidade. Restos mortais humanos foram encontrados e o pagamento foi feito à London Necropolis Company para sua remoção e sepultamento. Ossos de gente que morreu antes da invenção da ferrovia viajaram de trem", diz o texto.

Valas comuns parecem existir muito mais no imaginário popular do que na realidade
Jornais do século 19 mencionam cartas de leitores pedindo explicações às companhias de trem sobre o tratamento a restos mortais encontrados, com as empresas prometendo enterros dignos. Mas isso se referia aos vários cemitérios de igrejas "invadidos" pelas companhias de trem para as obras. Diante do fato de que inúmeras igrejas em Londres foram destruídas pelo Grande Incêndio de 1666, não seria algo completamente extraordinário que operários se deparassem com ossos em escavações na cidade - igrejas foram por séculos os principais cemitérios britânicos.

Mas as linhas de trem não parecem até agora ter atingido os "poços da praga". Isso porque essas valas comuns eram mais raras do que muita gente pensa: vítimas da peste eram enterradas em cemitérios quando havia disponibilidade, usualmente em pátios de igreja, assim como pessoas mortas de outras causas. "A praga foi uma experiência terrível para os londrinos, mas de certa maneira eles se ativeram aos hábitos que lhe traziam estabilidade e conforto. Uma delas era dar um enterro adequado aos mortos", explica Vanessa Harding, historiadora da Universidade de Londres.

Nem mesmo cemitério da Abadia de Westminster escapou de "invasão" da construção de uma estação de metrô
Harding diz não haver muitas valas comuns fugindo a essas características. "As pessoas pensam que, toda vez que se encontram corpos em escavações, é porque se trata de um 'poço da praga'. Mas o problema é que eles não eram tão disseminados em Londres assim como se pensa. As valas comuns se concentravam perto do centro financeiro e do West End. E a maioria delas tinha sua localização conhecida". Isso significa que uma grande número de "famosos poços da praga" não têm base histórica ou mesmo arqueológica. Houve rumores, mas não há provas de que existiram.

Ainda não está claro como foi que a lenda acabou ganhando força, mas não ajuda muito que autores conhecidos como Catharine Arnold se baseassem nesses rumores. Até porque o livro dela costuma ser recomendado como fonte para artigos sobre a história de Londres e seus mortos.

E as lendas só têm crescido: em junho deste ano, quando um passageiro do metrô publicou o vídeo de uma "aparição" na Piccadilly Line entre Knightsbridge e South Kensington, o tabloide Daily Express publicou uma reportagem em que médiuns falavam em um "espírito de uma vítima da peste negra". É justamente o tal trecho em que a linha faz uma curva para evitar uma vala comum, e que no artigo do Express, serve como exemplo de como "a direção de muitos túneis do metrô de Londres foram influenciados pelas vítimas da doença".

Escavações da Crossrail revelaram que, já no século 14, "enterros da peste" eram bem menos caóticos do que se imaginava
Mas a culpa não pode somente ser atribuída a escritores contemporâneos como Arnold. Parte da confusão se deve a escritores do século 17. Até Daniel Defoe - celebrado autor de Robinson Crusoé - lista, em Diário de Um Ano de Peste, um grande número de valas. Mas Defoe era uma criança em 1665 e muitos hoje consideram seu relato uma obra de ficção histórica.

Jay Carver, arqueólogo a serviço das obras do Crossrail, uma imensa extensão ferroviária-metroviária que está sendo construída em Londres e no sudeste britânico, chama a atenção para o fato de que alguns relatos sobre a epidemia de peste bubônica de 1347-48 teria resultado no enterro de 50 mil vítimas em Charterhouse Square. Há dois anos, sua equipe escavou lá. "Claramente, trata-se de um grande exagero, pelo que vimos. Para nós, parece mais que 5 mil foram enterrados lá", explica.

Isso, porém, não quer dizer que as histórias sejam totalmente inverídicas.

Os túneis do Crossrail estão sendo escavados em grandes profundidades, e evitam grande parte da arqueologia de Londres. As exceções são os locais em que os túneis entram no solo, além dos poços de elevadores e as estações. Carver diz que essas exceções respondem por 40 locais na cidade, todos devidamente investigados. Apenas em dois deles - Charterhouse Square, em 2013, e a estação ferroviária de Liverpool Street -, foram encontrados restos humanos.

Ossadas encontradas debaixo de Liverpool Street no ano passado são as primeiras comprovadamente de vítimas da Peste de 1665
Análise de esqueletos desciobertos em escavações do Crossrail identificaram DNA de bactéria responsável por Grande Peste de 1665
E nenhum deles foi uma surpresa. Em Charterhouse Square, por exemplo, ossos tinham sido encontrados durante obras na rede de esgotos em 1834 e 1861, bem como em obras ferroviárias em 1865 e 1885. A primeira descoberta arqueológica de vítimas da praga de 1665 ocorreu no ano passado, durante as obras do Crossrail. Cerca de 3,5 mil esqueletos foram escavados no local do Bedlam Cemetery, um cemitério dos séculos 16 e 17 hoje embaixo de Liverpool Street.

Todos estavam enterrados separadamente, exceto 42 indivíduos que pareciam estar em uma vala comum. Mas eles tinham sido colocados em caixões empilhados e dispostos um em cima do outro, e só passaram a impressão de terem sido enterrados em uma vala após o apodrecimento da madeira. É como se tivessem ido para abaixo da terra às pressas e no mesmo dia. Exames de DNA recentes velaram que todas essas 42 ossadas tinham indícios das bactérias que causam a peste bubônica. Tratam-se das únicas vítimas confirmadas da praga de 1665 em todo o Reino Unido.

Os mortos podem não ter alterado o formato da malha ferroviária de Londres, mas ossos de quem ainda está em seus locais de repousos são testemunhas silenciosas do intenso tráfego subterrâneo da cidade.

Fonte: BBC Brasil


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