Saudações amigos e amigas. Hoje eu volto a contar com a dica de postagem enviada por uma leitora, a nossa querida amiga Shéron Luiz. O tema proposto são os crimes cometidos por José Ramos, episódio que ficou conhecido como “O crime da rua Arvoredo”, ou mesmo “O linguiceiro da rua Arvoredo”, e que estremeceu Porto Alegre por volta de 1864.
Lembro-me de ter lido o livro O Maior Crime da Terra, do escritor e historiador Décio Freitas, na época em que eu cursava o ensino médio (final da década de 90). O escritor vasculhou os arquivos históricos de Porto Alegre, atrás de informações que pudessem confirmar a história que se contava de geração em geração. O escritor encontrou registros e alguns detalhes do crime, que ao longo dos anos ganhou o status de lenda urbana porto alegrense, e reuniu esse material no livro.
Segundo o historiador os processos relacionados ao caso estão incompletos, faltam folhas, sem contar que o material é todo manuscrito em português arcaico, o que contribui para dificultar o trabalho de quem tenta desvendar as historias dos crimes e de possível ato de canibalismo. E foi justamente o canibalismo que, segundo Décio Freitas, pode ter levado o caso a ser uma ferida dolorosa no seio da alta sociedade de Porto Alegre daquela época, e isso teria levado ao descaso no arquivamento de certas partes do processo.
O amigo e a amiga devem estar confusos, se perguntando o porquê de uma sociedade ter medo de revelar os segredos de um crime tão horrendo. Eu explico, José Ramos teria assassinado algumas pessoas, com o auxílio de sua parceira, Catarina Palse, e como forma de ocultar os cadáveres, usou a carne dos mesmos como matéria prima para confecção de linguiça, sendo que essa era vendida a muitos figurões da sociedade gaúcha.
Embora o blog Noite Sinistra já existe há um tempo considerável, eu sempre evitei falar desse assunto por alguns motivos. O mais importante desses motivos é que caso virou lenda, com muitas variações, portanto sempre haverão comentários retrucando a versão postada aqui. Certamente nenhuma das versões conhecidas para esse caso é de fato a verdadeira, que, como o historiador mencionado acima, relatou em seu livro, pode ter sido perdida ao longo do tempo e do descaso. Mas como a amiga Shéron solicitou o tema, eu acabei me mobilizando para escrever um pouco a respeito.
Os crimes da rua Arvoredo – Porto Alegre
No ano de 1864, as vésperas das animosidades da Guerra do Paraguai, Porto Alegre se espantava com um caso que chocante. Dois corpos são encontrados em um velho poço, nos fundos de uma casa simples. Os cadáveres pertenciam a um comerciante português e um caixeiro de 16 anos de idade. Ambos tinham a cabeça aberta por golpe de objeto cortante, possivelmente machado, e ambos haviam sido degolados. Para completar o cenário, junto a eles foi encontrado o cadáver de um cachorro, que os habitantes da cidade sabiam ser do caixeiro assassinado.
Durante as investigações a polícia chegou a José Ramos (algumas fontes afirmam que tinha 26 anos) e Catarina Palsen. Catarina era uma mulher nascida na Hungria, mas que falava a língua alemã e compartilhava dessa cultura, o que levou as pessoas a considerá-la de descendência germânica.
José é acusado pelo assassinato e Catarina acusada como cúmplice. Ambos são levados a júri e condenados. Esse poderia ser o fim da história toda, mas era apenas o começo de uma trama que desencadeou pesadelos e terror em meio aos porto alegrenses.
José Ramos
José Ramos havia nascido em Santa Catarina, filho mais velho de um gaúcho de descendência portuguesa, cujo nome era Manoel Ramos, que lutou na Revolução Farroupilha, mas que acabou desertando, e fugindo para o estado vizinho, onde ele se casou com uma índia, mãe de José, chamada Maria Conceição.
Quando criança Ramos teria desenvolvido um interesse peculiar pelas histórias de guerra contadas pelo pai. Ele sempre pedia detalhes, principalmente a respeito do processo de degola dos inimigos.
Certo dia Ramos sai em defesa da mãe que era espancada pelo pai bêbado. Na luta José acaba ferindo Manoel com uma faca. Esse morre alguns dias depois em decorrência dos ferimentos. José foge então para o Rio Grande do Sul.
Já morando em Porto Alegre, José Ramos foi empregar-se na polícia. Aparentemente em função de sua enorme truculência – há registro de surras medonhas que impunha a presos ou a simples suspeitos –, foi desligado do serviço formal, mantendo, no entanto, um vínculo empregatício sólido, como informante do chefe de polícia da capital, Dario Callado, outro sujeito conhecido por sua violência – a crônica conta coisas de arrepiar, como uma surra que ele aplicou em um tenente com quem disputou uma cantora de opereta de passagem pela cidade, ou um castigo desnecessário a um escravo que estava apenas e simplesmente caminhando por uma calçada do centro quando o chefe de polícia passava.
No processo, depois do assassinato do comerciante e seu caixeiro (e o cãozinho), a posição de José Ramos foi estranha. O próprio Dario Callado conduziu o inquérito (e um dos julgamentos também). Isso significa que o acusado era, de certa forma, um funcionário privilegiado da autoridade processante. Isenção nenhuma – e Décio demonstra, ao analisar a técnica de interrogatório, que Dario amoleceu as coisas para José Ramos.
Em Porto Alegre José Ramos compra - ou aluga - uma casa na então Rua do Arvoredo (atual Coronel Fernando Machado), no Centro da cidade. Seu antigo dono, Carlos Gottlieb Claussner (algumas fontes citam o seu nome como Carl Gottlieb Klaussner), continuaria gerenciando um açougue no térreo do local.
Ramos era um homem que gostava de frequentar o recém inaugurado Theatro São Pedro e estava sempre presente em festas da classe alta da cidade. Com o tempo, ele e Claussner tornaram-se os principais açougueiros da região central, fornecendo carnes e linguiças às mais famosas famílias do Centro.
Catarina Palsen
No início de 1864, José Ramos conheceu Catarina Palsen, uma jovem húngara de beleza arrebatadora. Eles apaixonaram-se instantaneamente e o homem a convidou para morar com ele. Passariam por um casal normal, se não fosse pela história de Catarina e pelos instintos assassinos de José.
Reprodução do casal em uma peça de teatro |
Catarina tinha apenas 12 anos quando assistiu a morte de toda sua família pelas tropas russas, ela por sua vez foi estuprada e se fingiu de morta, conseguindo assim sobreviver. Aos 15 anos, casou-se com Peter Palsen, e ambos resolveram vir para o Brasil. Ainda no navio seu marido se suicidou, e a jovem se viu sozinha em um país que não conhecia. Provavelmente, ela chegou ao Rio de Janeiro, não se sabe ao certo como ela veio parar no sul do Império brasileiro.
Os crimes
José Ramos havia confidenciado a Carlos seu instinto assassino, e na conversa descobriu um método prático para se livrar dos corpos: Claussner mencionou, brincando, que poderiam ser transformados em linguiças e vendidos.
Com Catarina, o plano macabro estava completo. A jovem atrairia os homens (na maioria imigrantes alemães), fingindo interesse sexual nos mesmos, até o endereço - hoje perdido - na rua do Arvoredo, onde eram mortos por Ramos, colocados em um baú e então, com a ajuda de Carlos, esquartejados, moídos, transformados em linguiça, e posteriormente vendidos aos transeuntes desavisados e às grandes famílias da região. Os ossos eram queimados ou jogados no Lago Guaíba.
Algumas fontes, dentre elas uma Dissertação escrita por Cristina Fuentes Hamerski , para o programa de pós graduação da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), afirmam que o ferreiro alemão Henrique Rithmann, mais conhecido por “o corcunda”, e Carlos Rathmann, também fizeram parte nos crimes, embora sua participação tenha sido de menor importância.
Os desaparecimentos começaram a despertar a curiosidade das pessoas, que pressionavam cada vez mais as autoridades a investigar. Isso começou a assustar Carlos, que decidiu se mudar para o Uruguai, mas foi morto pelo casal antes que pudesse fazê-lo. Sem as habilidades dele para moer os corpos, José optou por enterrá-lo.
Ramos contou as pessoas nos arredores que Carlos teria viajado para a Alemanha, embora algumas pessoas próximas ao açougueiro soubessem dos seus planos de ir para o Uruguai.
O caso começou a ser desvendado quando Januário Barbosa, um português dono de uma taberna, desapareceu com seu caixeiro, o menino José Inácio de Souza Ávila, de 16 anos. Ambos foram vistos pela última vez entrando na casa de José Ramos. O cachorrinho do menino permaneceu latindo na porta da casa por alguns dias, como se esperasse o dono voltar, até que misteriosamente também desapareceu.
Esse fato intrigou os moradores da região, que pressionaram a policia para que a casa fosse vistoriada - o que foi prontamente atendido em 18 de abril de 1864. Para o horror geral, foram descobertos no pavimento inferior da casa, numa cova, ossos humanos e um cadáver em avançado estado de putrefação. Januário e José Inácio foram encontrados, mutilados, no quintal da casa, junto com o cão.
Procedidas as diligências criminais, o cadáver do porão foi identificado como sendo de Carlos Claussner. Pela casa foram encontrados vários objetos de uso pessoal dos desaparecidos. Na cadeia, José Ramos confessou os assassinatos e Catarina Palsen deu detalhes de tudo.
Com o aprofundamento das investigações, chegou-se ao horror maior: essa pequena gangue, liderada por José Ramos, havia matado outras seis pessoas, no ano de 1863, todas elas de ascendência germânica, algumas vindas das colônias para comerciar em Porto Alegre, outras de passagem pela cidade. E não apenas morreram essas pobres criaturas: da carne de seus corpos, José Ramos, com apoio maior ou menor dos outros, havia feito linguiça. Linguiça que o açougue de Claussner havia vendido, inclusive para as melhores famílias da cidade.
Ramos foi condenado a prisão perpétua. Mas como ele conhecia muita gente da polícia, gente importante inclusive, ele usufruiu de alguns favores, que tornaram sua vida de presidiário mais agradável. José Ramos faleceu em 1893, internado na Santa Casa de Porto Alegre. Ele morreu leproso e sem nunca ter admitido os crimes que Catarina afirma que ele cometeu.
Catarina foi internada em um hospício, onde passou a maior parte da vida. Ela foi encontrada morta em 1891 - provavelmente se suicidou - algum tempo depois de ser libertada.
Até onde se sabe o grupo matou 9 pessoas, mas esses números podem até ser maiores.
O fato é que hoje ninguém questiona os crimes, porém a história das linguiças fabricadas com carne humana e comercializadas entre os ricos de Porto Alegre, ganhou contorno de lenda urbana. As muitas páginas do processo judicial perdidas podem conter a verdade a respeito desse sórdido caso, porém é muito provável que esses documento estejam perdidos para jamais serem encontrados.
Segundo D. Freitas, inclusive Charles Darwin teria escrito um artigo acerca do episódio ocorrido na capital gaúcha. Em1868, o cientista teria recebido notícias – não se sabe se por meio de jornais ingleses ou por informações do cônsul inglês em Porto Alegre – e escrito um comentário.
O fato é que hoje existe o crime; porém, as provas sobre as linguiças fabricadas com carne humana foram consumidas no decorrer do processo e o passar dos tempos.
O impacto na sociedade local
A época dos crimes da rua Arvoredo são períodos altamente conturbados da história brasileira e gaúcha, pois aconteceram as véspera da Guerra do Paraguai (1865-1870), para a qual o Rio Grande do Sul representou, além de base estratégica de operações, a fonte principal de mão de obra militar e mesmo de animais para corte e transporte.
Sendo uma história acontecida na capital gaúcha, é preciso acrescentar elementos contextuais decisivos. Província mais ao sul do Império brasileiro, única fronteira viva do mundo luso com o castelhano, com uma larga faixa de território sendo palco de lutas sangrentas, o Rio Grande do Sul viveu em um curto espaço de tempo duas guerras muito fortes: a Guerra dos Farrapos (1835-1845), guerra civil que opôs dois grupos locais, um favorável a um processo de independência da província em relação ao Brasil, outro favorável à manutenção da unidade do Império, tendo como centro econômico a produção e distribuição do charque, a carne salgada, principal produto do estado naquela altura; e a Guerra Contra Rosas (1851-1852), em que parte do exército brasileiro da região se envolveu em uma campanha para derrubar do poder um dos mais poderosos caudilhos platinos.
Porto Alegre não foi o palco principal de nenhuma dessas lutas, mas, sendo a capital, nela ecoavam todas as movimentações. A vida política, decisiva para as guerras, acontecia na capital. Da mesma forma, era nela que se refletia, e com enorme força, outra novidade social, econômica, cultural – a imigração alemã para o vale do rio dos Sinos, região localizada a uns 40 quilômetros da capital gaúcha, onde se fixou um fantástico contingente de colonos, a partir de 1824, que nos anos 1860 já produzia regularmente alimentos in natura ou em conserva, que eram exportados através do porto da capital.
Na capital gaúcha se desenvolvia um notável setor industrial e de serviços, grande parte do qual também era protagonizado por imigrantes de língua alemã – hotéis, padarias, açougues, alfaiatarias, charutarias, chapelarias etc. Estima-se que, dos 20 mil habitantes, 3 mil seriam de língua alemã, prussianos, saxões, boêmios, austríacos, suíços, mesmo belgas – e cada uma dessas origens contava com um serviço consular na cidade (no total, subiriam a duas dezenas os consulados).
A grande maioria da sociedade porto alegrense era constituída de pessoas de descendência portuguesa. Esse grupo não via com bons olhos a chegada dos alemães, muito por conta dos costumes e da sua religião (alemães eram na sua esmagadora maioria Luteranos enquanto o restante da população era Católica). Essas diferenças acabariam tendo participação em outro trágico episódio da história gaúcha, conhecido como "O Massacre do Muckers" (clique AQUI para ler a respeito), que aconteceu poucos anos depois.
Essa "rivalidade" que se instalou na sociedade de Porto Alegre, levou parte da sociedade a usar o caso da rua Arvoredo como forma de difamar ainda mais os imigrantes alemães, embora boa parte das vítimas dos crimes cometidos tenham sido contra pessoas desse grupo de imigrantes. Uma das calúnias muito difundidas na época era que Catarina (húngara, mas que falava alemão) seria uma prostituta, e um membro do grupo dos Muckers. Nunca ficou provado que Catarina fosse prostituta. Carlos Gottlieb Claussner, foi acusado pela sociedade como o mentor intelectual dos crimes, tendo usado Ramos como ferramenta. Nesse ponto de vista eu até concordo em parte, pois foi o plano arquitetado por Carlos que permitiu que José Ramos desse vasão as suas vontades.
Esse tipo de tratamento dado ao caso acabou gerando grande tensão na sociedade gaúcha da época. Imigrantes alemães sofriam preconceito e acabavam se fechando ainda mais em comunidades compostas por pessoas de mesma origem. Reflexos dessa reclusão germânica podem ser ainda hoje em dia observados em várias cidades do interior gaúcho, onde imigrantes alemães foram os colonizadores.
Abaixo eu compartilho o link para a Dissertação escrita por Cristina Fuentes Hamerski , para o programa de pós graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cujo nome é: "OS CRIMES DA RUA DO ARVOREDO: Versões e subversões em Cães da Província e Canibais: paixão e morte na rua do Arvoredo", para os leitores interessados em conhecer um pouco mais a fundo esse assunto.
Fontes: Cova do Inferno, Porto Alegre Tchê e Wikipédia
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Só uma observação: a dissertação da Cristina Fuentes Hamerski não foi defendida pelo "programa de pós-graduação" da UFRGS, mas na FURG (Universidade Federal de Rio Grande), no programa de pós-graduação em Letras.
ResponderExcluirBem observado...de fato a instituição de ensino é a FURG. O erro se deu por eu ter encontrado a dissertação no repositório da UFRGS, logo achei que o "trabalho" fosse ligado a essa universidade, mas na capa da dissertação está referenciada a instituição correta...
ExcluirGrato pelo aviso...
Só como curiosidade.O recorte de O Moedor é o folder do espetáculo de 2012 "O Linguiceiro da Rua do Arvoredo", dirigido por Daniel Colin. Na Foto, Leandro Leffa como Ramos e Ursula Collischonn como Catarina.Um lindo trabalho sobre a história que nos afeta até hoje. Foram nossos ancestrais porto-alegrenses canibais involuntários, ingerindo linguiça de gente? Nunca saberemos com certeza!Eu moro na Rua do Arvoredo, apesar da mudança do nome, muitos ainda a chamam assim, eventualmente e um dos mistérios que não conseguimos evitar de sondar andando pela rua é: Onde,exatamente ficava a casa de nº41, que consta nos autos do processo como o endereço do açougue? Após a casa ser demolida para as futuras construções na rua, seu número e sua localização foram varridas e vetadas no decorrer do tempo!Quem mora sobre o porão do Ramos hoje? Um bom mistério para o Noite Sinistra!
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