Tortura e morte no Reformatório Arthur G. Dozier

em 03/10/2014


Saudações amigos e amigas. Hoje falaremos um pouco sobre o reformatório Arthur G. Dozier. Essa foi uma instituição destinada a recuperar e reeducar jovens infratores do estado da Flórida, mas que teve inúmeras denúncias de maus tratos e abusos cometidos contra os internos. Convido a todos a conhecer um pouco mais da história desse lugar, e das mórbidas descobertas feitas recentemente no local.

A fundação Florida School for Boys

O reformatório Arthur G. Dozier, também conhecido como Florida School for Boys, foi um reformatório e centro educacional para menores “problemáticos” fundado na cidade de Marianna no estado norte americano da Flórida, em 1º de Janeiro de 1900. Essa instituição foi por um longo período de tempo o maior reformatório juvenil dos EUA. Em 1955 foi fundado um segundo campus na cidade de Okeechobee. O centro de recuperação juvenil Dozier era dividido em dois segmentos, o lado sul (número 1) e o lado norte (número 2). No sul ficavam os jovens brancos e no norte os jovens negros. A segregação durou até o ano de 1968.


Por volta de 1903 - uma época em que o sistema penal era no mínimo brutal – inspetores do reformatório já recebiam denúncias chocantes de maus tratos. "Internos" eram despidos de seus nomes e identidade, passando a ser tratados apenas como números. Punição física era algo trivial, e até 1930 vigorou um conjunto de regras internas que incluía chibatadas.

Em 1929 foi construído um prédio com 11 salas de aula e duas celas, uma para alunos negros e outra para alunos brancos. Esse prédio seria usado para corrigir (imaginem o que significava o termo “corrigir” um menos infrator nessa época) alunos considerados altamente problemáticos, sendo apelidado de “Casa Branca”. Esse local foi palco de muitos abusos físicos e psicológicos até o ano de 1967, quando o lugar passou a ser usado apenas como depósito.

Construção da "Casa Branca"
Até 1955 não haviam banheiros nos alojamentos, até então os jovens deveriam fazer suas necessidades fisiológicas em bacias e potes. A procedência da comida era ignorada, e muitas vezes servidas em pratos improvisados e desprovidos da higiene adequada.

Em 1968 o reformatório recebeu a visita do então governador do estado da Flórida, Claude Kirk. Kirk afirmou durante a visita que: “alguém deveria ter soprado o apito aqui a muito tempo”. Nessa época a escola possuía 564 internos, sendo que a grande maioria deles estavam lá por terem cometidos pequenos delitos, que iam de fugir da escola ou de casa. Na maioria dos casos esses eram jovens com uma vida familiar conturbada, muitos deles tendo sofrido todo o tipo de agressão e abusos. Em Arthur G. Dozier, a situação não era muito diferente. Lá os internos eram submetidos a uma reeducação social centrada em castigos físicos e, em alguns casos, abusos de poder por parte dos “educadores”.

Em 1969 o governo decidiu reorganizar os métodos usados na escola, afinal a opinião pública começava a questionar os métodos usados no instituto. A partir desse ano o reformatório passou a ser administrado pela Divisão de Serviços da Juventude do estado da Flórida.

Mas nem tudo era desgraça nesse lugar. O centro era tido como um dos melhores dos EUA. Os internos tinham uma certa infraestrutura a sua disposição, como piscina e um mini trem para a diversão. O local possuía também um pequeno zoológico. No local os jovens tinha aulas que envolviam as matérias convencionais, como física e matemática, mas também aprendiam atividades alternativas como cuidar de um rebanho bovino, tirar leite de vaca, corte e costura, marcenaria, etc.


Embora o local apresentasse opções educativas e de ressocialização interessantes para os internos que realmente estivessem dispostos a isso, o instituto teve sua imagem manchada por casos de violência contra menores. Embora tenha havido uma reformulação no lugar em 1969, visando “humanizar” os castigos, em 1982 uma inspeção revelou que muitos meninos eram amarrados e mantidos no isolamento durante semanas. A União Americana pelas Liberdades Civis (UCLA, sigla em inglês) entrou com uma acusação na justiça por causa dos maus tratos cometidos contra os internos. Nessa época o reformatório abrigava 105 jovens entre 13 e 21 anos.


Em 1987, diante de uma chuva de processos contra a escola, o sistema de justiça juvenil da Flórida passou a instituição para o controle federal. Durante o final da década de 80 e a década de 90, os abusos cometidos na escola Arthur G. Dozier, foram alvos de inúmeras discussões e debates.

Os garotos da Casa Branca

O apelido Casa Branca, foi dado ao prédio construído em 1929, por conta da sua cor branca. Como já foi visto mais acima, os internos reeducados nesse prédio eram aqueles considerados como problemáticos, então já podemos imaginar o tipo de tratamento que eles recebiam. Na época de sua fundação os internos que eram “tratados” nesse prédio tinham que fazer uso de bolas de ferro acorrentadas aos seus pés. Há relatos de que alguns internos eram confinados em buracos cavados no pátio, como forma de repreensão. Esses buracos eram tampados com madeiras depois que os detentos eram colocados no seu interior. Eles permaneciam nesses cubículos sob de sol e chuva, sendo que muitos detentos chegaram a ficar presos nessas celas improvisadas durante semanas.


Em 16 de janeiro de 2009, um ex interno da Dozier, Roger Dean Kiser, publicou o livro The White House Boys: An American Tragedy (Os Garotos da Casa Branca: Uma Tragédia Americana).


No livro, ele narra todo o horror dos garotos que eram levados até a Casa Branca. Seguindo o seu exemplo, vários ex internos da escola vieram a público dar os seus testemunhos. No mesmo ano, a escola foi tema de uma extensa reportagem do jornal da Flórida, St. Petersburg Times. A reportagem, For Their Own Good (Para Seu Próprio Bem), foca nas alegações de garotos que ficaram internados durante as décadas de 1950 e 1960. Pela primeira vez, ex internos vieram a público e disseram como eles apanhavam com um cinto de couro de três metros de comprimento. Um ex interno diz na matéria que ele foi punido na Casa Branca onze vezes, recebendo mais de 250 chicotadas. Mas os garotos não eram apenas torturados. Na Casa Branca havia uma sala de estupro e alguns dos meninos abusados tinham apenas nove anos de idade.

O ex interno Roger Dean Kiser segurando um instrumento usado na punição dos internos
O caso ganhou repercussão nos Estados Unidos e em fevereiro de 2010 uma investigação pedida pelo governador da Flórida foi conduzida para verificar as alegações de abuso, tortura e morte, na Casa Branca. Segundo os ex internos, os brancos eram torturados e os meninos negros… mortos!

Mais de uma centena de entrevistas foram conduzidas com ex internos e famí­lias. A investigação durou 15 meses e, mesmo com exames forenses, não produziu nenhuma evidência concreta de tortura ou morte dentro da escola.


Troy Tidwell, um dos funcionários da escola na década de 1960 e apontado pelos ex internos como um dos torturadores, disse que as punições na Casa Branca não eram excessivas e eram conduzidas com as tiras de couro porque havia a preocupação da diretoria da escola de que palmadas com pás de madeira poderiam ferir os meninos.

Troy Tidwell
A investigação terminou e não foram encontradas evidências tangí­veis de que houvera abusos físicos e sexuais na escola. O promotor Glenn Hass decidiu não acusar ninguém no caso. Segundo ele, perante a lei, não seria possí­vel provar ou não que houvera crimes dentro da escola.

Fechamento do reformatório

Embora as punições físicas tenham sido abolidas nas escolas em 1968, até os anos 1980 inspeções revelaram que estudantes da Escola Dozier eram disciplinados com palmatórias, cordas molhadas e porretes, além do isolamento a que alguns alunos eram submetidos conforme já foi visto mais acima. A investigação conduzida pelo Departamento de Justiça, com base nas acusações, influenciou no fechamento da instituição em maio de 2011. Apesar das investigações, a razão oficial para o fechamento do reformatório foi a falta de fundos para mantê-lo em funcionamento.

Uma descoberta assustadora

Segundo os ex internos, havia um cemitério no Lado Norte da escola, o lado dos negros. Segundo eles poderiam haver mais de 50 estudantes enterrados nesse cemitério clandestino. O Lado Norte foi fechado em 1990 e, desde então, tornara-se um lugar abandonado.

Kiser, em seu livro, diz que alguns dos meninos eram queimados no incinerador da escola. Segundo ele, havia relatos de meninos que haviam visto pedaços de corpos humanos no chiqueiro, onde restos de comida eram despejados pelos funcionários da escola para alimentar os porcos.

A história despertou o interesse de Erin Kimmerle, antropóloga forense e professora associada da Universidade do Sul da Flórida. Liderando uma equipe de antropólogos, biólogos e arqueólogos, ela começou a explorar o campus da Dozier em Marianna.

Erin Kimmerle
Em 6 de agosto de 2013 o governador Rick Scott deu autorização para a Universidade do Sul da Flórida escavar e examinar supostos restos mortais que fossem encontrados.

Em 28 de janeiro de 2014, os jornais nos EUA traziam a público as descobertas realizadas até então no local. As pesquisas resultaram na descoberta de 55 corpos depositados em covas não identificadas em vários pontos do terreno. A instituição que funcionava como reformatório para rapazes hospedou cerca de 1400 internos no seu período mais ativo. A investigação inicial, conduzida pelo Departamento de Justiça do estado da Flórida buscava originalmente determinar se no cemitério haviam cadáveres não identificados.


Os esforços na recuperação dos cadáveres vem sendo conduzidos pela Dra. Erin Kimmerle, e envolve atualmente mais de cinquenta pesquisadores de nove diferentes agências. O objetivo deles é identificar crianças desaparecidas, determinar a causa da morte e proporcionar a elas um enterro decente.


Durante a coletiva de imprensa, a Dra. Kimmerle expressou a motivação de todos os envolvidos nessa missão: “Nós pretendemos conceder às famílias uma solução, uma espécie de fechamento para que os pais finalmente saibam o que aconteceu aos filhos. Com isso eles poderão saber em que circunstâncias seus filhos morreram e providenciar o descanso que merecem”.


O cemitério da escola, ironicamente registrava apenas 13 sepulturas assinaladas por cruzes feitas de canos de PVC. Nem todas estavam marcadas, o que levou as autoridades a pedirem o auxílio dos técnicos. A equipe enviada para o local utilizou um radar de penetração no solo e as primeiras sondagens evidenciaram leituras de que haviam outros cadáveres sepultados fora do cemitério. "Descobrimos que estávamos diante de algo muito maior e assustador. Havia covas improvisadas em todo terreno".



Além das ossadas, a equipe encontrou milhares de artefatos, que irão ajudar a datar mais acuradamente quando cada criança morreu e com um pouco de sorte, a sua identidade. Alguns dos artefatos incluem restos de roupas, fivelas de cintos, botões, restos de caixões e em alguns casos brinquedos, como bolas de gude que ainda estavam no bolso de um dos garotos, o que indica que algum deles podem ter sido enterrados as pressas.


Como resultado da extensiva pesquisa conduzida pela equipe da Dra. Kimmerle, já foram encontrados 98 rapazes que morreram no reformatório entre os anos de 1914 e 1973. A maioria dessas vítimas são jovens negros, com idades que variam entre 6 e 18 anos. Durante as exumações, o time de antropólogos descobriu que pelo menos sete deles morreram violentamente na mesma época. Há indícios de que eles tenham sido mortos em uma tentativa de fuga ocorrida nos anos 1960. Quatro deles tinham ferimentos a bala e marcas condizentes com uma agressão brutal. Os sete haviam sido enterrados em uma mesma vala, próxima ao portão principal.


Outro grupo composto por cerca de 25 internos também foram sepultados em uma vala comunitária em meados de 1914, quando um incêndio destruiu um dos alojamentos. Na ocasião, as portas trancadas impediram a fuga dos internos que morreram queimados. Uma epidemia de gripe também foi responsável por 13 mortes nos primeiros anos da década de 1920.


Não é exagero, dada a quantidade de cadáveres descobertos e as inúmeras estórias contadas por indivíduos que habitaram a "Casa Branca" e sobreviveram à experiência, assumir que a grande maioria das mortes não sejam resultado de causas naturais. De fato, os antropólogos determinaram que inúmeras ossadas apresentam sinais de violência e outros atos bárbaros. Mais de 25% dos internos identificados morreram nos primeiros três meses de cumprimento de pena, o que demonstra claramente o grau de mortalidade das instalações.


Pesquisadores sugerem que muitas das crianças e adolescentes enterrados podem ter sido assassinados. Apenas o exame detalhado de cada um pode estabelecer a causa de suas mortes. Cinco conjuntos de mostras de DNA foram enviadas para a Universidade do Norte do Texas e para o Centro de Ciências para identificação dos corpos. Antropólogos também utilizarão programas de computador para reconstrução facial a fim de aumentar as chances de reconhecimento.

A Universidade do Sul da Florida começou a efetuar as escavações no terreno da Escola em Agosto de 2013. A Secretaria do Estado tentou impedir o início dos trabalhos, inclusive recusando a autoridade dos envolvidos na investigação. A equipe foi forçada a recorrer a várias entidades e até ao Governador da Florida Rick Scott, que finalmente permitiu o início dos trabalhos.

Enquanto o processo segue em frente, a Dra Kimmerle planeja a abertura de uma nova frente de escavação com o apoio de mais 30 pesquisadores. A área a ser escavada corresponde a um terreno junto de dois alojamentos que foram desativados na metade da década de 70 e que muitos ex internos apontam como uma área onde aconteceram muitos enterros. Ela espera localizar um cemitério clandestino dessa vez de internos em sua maioria de ascendência caucasiana. Segundo a Dra. Kimmerle, até a década de 1960, haviam cemitérios separados para internos de diferentes grupos étnicos. "Não sabemos o que vamos encontrar, mas com certeza, ainda há muitos corpos esperando serem encontrados".


Os horrores que estão sendo resgatados do solo escuro da Escola Dozier cobrem quase um século de injustiça e vergonha na História americana, incluindo a tentativa das autoridades de esconder os fatos. Ela mostra que mesmo na mais poderosa e rica nação do planeta, crianças e adolescentes estão sujeitas a condições aterradoras e ao descaso da sociedade.

Primeiro cadáver é identificado

No dia 7 de Agosto de 2014, George Owen Smith tornou-se primeiro estudante da Arhtur G. Dozier a ser identificado. Sete meses depois de 55 corpos serem encontrados nas dependências da escola, os irmãos de Owen podem finalmente dormir em paz.

George Owen Smith (fazendo carreta) em foto com os irmãos
George Owen Smith foi enviado para a Arhtur G. Dozier em 1940, aos 14 anos, por roubo de carro. Ele nunca mais foi visto. Aos seus pais foi dito que ele morrera de pneumonia após fugir da escola e se esconder numa casa. Seu pai faleceu na década de 1960, sua mãe nos anos de 1980. E na beira da morte, ambos pediram para que seus filhos, irmãs de Owen, continuassem à sua procura. “Vocês encontrarão Owen e o trarão de volta?”, escutou de seu pai, Ovell Krell, irmã de Owen. “Eu tentarei até o dia que eu morrer, Papai”, ela respondeu.

Ovell Krell
E após mais de 70 anos, Krell, hoje uma senhora de 85 anos, encontrou o irmão. “Eu o colocarei com o meu pai”, disse ela numa coletiva de imprensa.

A identificação de Owen só foi possí­vel devido aos irmãos do garoto terem enviado amostras de DNA para comparação. Erin Kimmerle disse que novas identificações podem sair a qualquer momento.


Declarações de ex interno de Arthur G. Dozier

Um dos internos, chamado Richard Newest, que viveu na Escola quando tinha 12 anos escreveu um testemunho de sua estadia e chegou a publicar a matéria em um jornal no ano de 1964:

“Logo que cheguei a Escola, eles tiraram de mim o meu nome e eu me tornei apenas um número. Eu fui o interno R 297 por oito longos meses. No primeiro dia fui levado para um prédio, mandaram que eu vestisse um uniforme cinza, me deram um cobertor, um copo e um prato de alumínio. Eu fiquei em um alojamento com outros 40 meninos, sem separação nenhuma de idade. Os mais jovens choravam de medo durante o dia e a noite tentavam ficar em completo silêncio. Todos queriam ser invisíveis e não atrair a atenção de veteranos ou de um guarda. Todos sabiam o que podia acontecer se um deles o pegasse sozinho. Eu comia uma vez ao dia e recebia uma ração que não passava de uma sopa rala de cascas de batata e um pedaço de pão seco. Comíamos com as mãos, rápido para que ninguém tomasse nossa comida. Mesmo hoje, passados tantos anos, por vezes ainda acordo sem ar, achando que estou na Escola Dozier".



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2 comentários:

  1. Quem estiver afim de ter uma pequena ideia de como funciona estes reformatórios nos EUA, assistem um filme que saiu este ano chamado "Coldwater". É muito pequena a ideia, mas ajuda a visualizar o que ocorreu neste reformatório do texto bem postado pelo 'Adm'.

    E para não perder a deixa; a "Casa Branca" só mudou de endereço.

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  2. Uma pena que o livro "The White House Boys" não tenha tradução em português... e duvido muito que as editoras publiquem.

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