Conto: A Cartomante

em 16/01/2014


– Lê! Ô Lê! – a garota ouviu o amigo chamando no portão de sua casa.

Suspirando, ela passou cuidadosamente o pincel do esmalte no dedo mindinho do pé antes de levantar do sofá e atender o amigo. Ouviu mais uma vez os gritos a chamando e quase derrubou o potinho inteiro de esmalte no tapete da sala.

– Clara Letícia, deixe de frescura e abra esse portão! – Davi estava quase derrubando o portão de grades de ferro conforme o chacoalhava.

– Se você tivesse esperado trinta segundos, eu teria vindo mais rápido. – ela destrancou o portão e deu um abraço apertado no melhor amigo. – Eu estava pintando as unhas.

A menina praticamente esfregou as unhas das mãos, pintadas de vermelho sangue, no rosto de Davi, que rindo segurava os pulsos da amiga, fingindo que estragaria seu minucioso trabalho.

– Ainda não está pronta, Lê? A inauguração é hoje! – a voz de Davi demonstrava sua ansiedade. – Você sabe que eu preciso de um laptop novo e eu finalmente tenho dinheiro o suficiente para comprar um modelo bom dessa vez – disse com uma expressão pensativa. – E eu não mais vou deixar você instalar The Sims 3. Meu computador fritou por sua culpa.

– Nem mesmo a base? – disse Letícia ofendida. – Nem se eu instalar só uma expansão ou duas? Não fica tão pesado assim!

– De jeito nenhum! – Ele riu e balançou negativamente a cabeça.

– Tá bom, me ajuda a secar o cabelo e escolher uma roupa, e aí poderemos sair.

Ele passou as mãos nos cabelos castanhos, lisos e curtos, denunciando sua impaciência. Os cabelos longos, loiros e encaracolados da amiga demoravam uma eternidade para ficarem da maneira que ela queria.

– Olha, seja rápida, que eu quero chegar lá ainda hoje – respondeu ele, olhando para o sol no centro do céu e seguindo a amiga para dentro da casa. Davi entrou na casa da amiga e seguiu diretamente para a cozinha praticamente esterilizada pela mãe da amiga, dona Sara.

Ele sempre desejou que a mãe da amiga fosse sua mãe também: dona Sara além de ser uma jornalista trabalhando em casa, ainda encontrava tempo para cuidar com esmero do lar e da família, além de cozinhar de tal maneira que envergonharia os melhores chefs do mundo.

Ele adorava a comida farta que encontrava na casa da amiga e achava muito estranho que Letícia conseguisse manter uma silhueta magra e esbelta. Ele abriu o forno e sorriu de orelha a orelha com a fornada de empadinhas de frango. Servindo-se de um prato, empilhou quantas conseguiu e seguiu até o quarto da amiga.

A garota estava esticando os cachos loiros com uma escova larga e um secador e sorriu para o amigo.

– Não sei se você vem aqui pra me ver ou pra comer – ela gritou mais alto que o ruído do secador. – Acho até que sua amizade é por interesse!

– Mas é claro que minha amizade é por interesse. Eu só perco meu tempo com você porque sou apaixonado pela sua mãe!

Ambos gargalharam enquanto ela desligava o secador e passava para os produtos de maquiagem, pedindo ajuda para o amigo. Cerca de quarenta e oito minutos depois estavam saindo em direção ao novo shopping. Rindo e conversando, passaram por uma rua estreita. Letícia reparou em uma casa simples com o portão aberto. Dentro havia uma placa onde se lia “Madame Nair – Cartomante” que chamou a atenção imediata da garota.

Puxou o amigo pela mão em um impulso incontrolável e entrou sem pedir licença. O interior da casa estava escuro por causa das pesadas cortinas, as paredes da sala pintadas em um forte violeta com representações das constelações mais importantes do céu noturno, o piso totalmente coberto por tapetes persas e uma mesa redonda com um tecido negro cobrindo-a até o chão, com uma brilhante bola de cristal no centro. A garota hipnotizada se dirigiu à mesa e mostrava uma fixação intensa pelo objeto sobre a mesa.

– Eu não tocaria nisso se fosse você – disse uma voz feminina em tom de deboche, assustando ambos. Ela estava sentada em uma cadeira de espaldar alto imediatamente atrás da mesa, mas nenhum deles a viu até que ela se pronunciasse. A mulher era linda, de uma beleza magnífica. Ambos notaram que era impossível determinar a idade da mulher, que parecia ter algo entre vinte e cinco a trinta e cinco anos, mas que obviamente era muito mais antiga do que aparentava.

Seus cabelos eram negros como penas de corvo e perfeitamente lisos, caindo suavemente por seus ombros e desaparecendo abaixo de sua cintura. Ela usava um vestido negro simples de mangas longas, mas com um decote generoso mostrando a pele branca e pálida.

– Me desculpe, senhora – disse a garota timidamente – mas vi a porta aberta e não pude resistir.

A mulher a cortou com um simples movimento da sua mão direita, pedindo silêncio.

– Você veio a mim porque precisa de mim. – a mulher respondeu em um tom monótono. – Eu sou Madame Nair.

Os olhos negros da mulher eram intensos e profundos e encontraram os verdes e inocentes da garota e os castanhos e juvenis do garoto. Um arrepio percorreu suas espinhas ao mesmo tempo.

– Não devem ir – ela falou simplesmente.

– Não devemos ir aonde? – o garoto respondeu inquieto.

– Não devem ir onde estão indo agora. Ambos morrerão hoje se insistirem por esse caminho.

Os adolescentes se entreolharam assustados, mas incrédulos. Os olhos do menino marejaram e ele abraçou a amiga, sussurrando em seu ouvido que nada daquilo era verdade e que a mulher tentava apenas tirar dinheiro deles.

– Davi, eu tive um mau pressentimento durante essa semana. Talvez tenha algo a ver com o shopping, você não pode ter se esquecido de todas aquelas histórias. De todas aquelas mortes horríveis…

– Foi só uma coincidência, Lê. Essas coisas não acontecem assim do nada, são apenas lendas porque a cidade toda ficou traumatizada. – Ele mesmo não acreditava no que dizia. Em seu inconsciente, ele sabia que havia algo errado com aquele shopping, mas assim como a maioria das pessoas, ele tendia a ignorar os próprios instintos.

– Vamos para casa, sim? – seus olhos verdes imploravam ao melhor amigo.

– Claro que sim – ele respondeu ternamente – Eu comprarei o computador outro dia, está bem?

A garota sorriu, tranquilizada pelas palavras do amigo. – Não, não, vamos pegar seu computador idiota e você paga o jantar.

Ele riu dela e lhe deu um beijo na bochecha. Eles estavam saindo quando a cartomante segurou no braço do garoto e silenciosamente passou-lhe algo que estava em suas mãos. A mulher sorriu e o casal saiu para a rua, sem perceber o olhar penoso que Madame Nair lhes direcionava. Davi abriu a mão e viu um pêndulo de cristal negro em uma corrente de prata, que sem pensar colocou em seu próprio pescoço e escondeu dentro do decote da camiseta.

As portas do shopping estavam lotadas, centenas de pessoas esperavam pela inauguração que aconteceria dentro de poucos minutos. Sem prestarem atenção alguém cortou uma fita e as portas abriram-se para receber todos os consumidores cheios de vontade de esgotar o limite de seus cartões de crédito nas dezenas de novas lojas. O fluxo das pessoas fez com que ambos fossem tragados até o saguão principal do shopping.

Apesar de encantados com todas as novidades, seguiram diretamente para a loja de eletrônicos do primeiro andar e começaram a pesquisar os preços. Eles não repararam que havia algo errado até ouvirem o baque do primeiro corpo atingindo o piso térreo. Não havia nenhum grito por socorro, nenhuma pessoa traumatizada pelos restos de órgãos e sangue espalhados por todo o chão, mas em seguida outro e mais outro corpo atingiram o piso, próximos ao primeiro.

Davi procurou pela amiga e a viu andando vagarosamente em direção ao último andar, em transe. Ele tentava segurar a garota, mas uma força sobre-humana a levava cada vez mais longe dele para o mesmo destino que as outras centenas de pessoas.

Todas em transe se atiravam do último andar em direção à morte, o sangue de todas elas se misturando e formando uma única poça gigantesca. As pessoas, ele podia ver em seus olhos, estavam apavoradas, mas não conseguiam expressar outra reação além do terror estampado em suas expressões.

Elas sabiam que morreriam, uma morte terrivelmente dolorosa, principalmente aqueles que sobreviviam à queda e agonizavam afogados no sangue de tantos outros. Ele pensou brevemente no porque de não estar hipnotizado como os outros, e sua mão foi instintivamente guiada ao amuleto em seu pescoço. Ele segurava Letícia pelo antebraço, e ela estava quase na beirada da balaustrada do último andar.

Ela se atiraria. E ele não a soltaria nem mesmo quando ela caísse. Ele implorou que alguém os salvasse durante a queda, mas ele viu com todos os detalhes os corpos que se aproximavam dos dois conforme eles caíam. E tudo ficou escuro.

– Vamos pra casa, sim? – A garota perguntou, mas o amigo parecia distraído. – Davi, eu estou dizendo para irmos para casa.

Ele olhou a sua volta, ambos ainda na sala de Madame Nair. Ele sentiu seu pulso doer e abriu a mão para encontrar o pequeno pêndulo negro com a corrente prateada, inspirando o ar chocado. Seus olhos encontraram os negros da mulher, que assentiu levemente.

– Eu tenho uma ideia melhor – ele respondeu tão calmamente quanto podia. – Vamos até minha casa, assistir um filme e pedir comida chinesa, amanhã vamos procurar esse bendito computador.

Letícia suspirou aliviada e sorriu, saindo em direção à rua.

– Não podemos mudar isso? – ele perguntou à mulher em um sussurro. Ela balançou negativamente a cabeça, parecendo triste e cansada.

– É o destino. – ela respondeu sem dizer mais nada.

Mais tarde naquela noite, enquanto a garota dormia serenamente em seu colo e os créditos finais do filme subiam pela tela da televisão, ele sabia que não precisaria mudar para o canal de notícias para saber sobre a tragédia que acontecia naquele momento.


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