Conto de Terror: Metzengerstein – Edgar Allan Poe

em 07/06/2013


Olá amigos e amigas, hoje eu volto a publicar um conto de terror. Na duas últimas semanas, abdiquei do direito (ou seria ignorei o dever?), de postar um conto, para em uma das sexta feiras fazer divulgação do livro Ab Origine - Desde a Origem e na última semana eu acabei meio que sem tempo para realizar a postagem, por motivos acadêmicos. Hoje dou sequencia a essa série de contos que venho postando, e mais uma vez, apelo para um texto do grande mestre Edgar Allan Poe. Aproveitem...

Metzengerstein

Pestis eram vivus – moriens tua mors ero.
Vivendo era teu açoite – morto, serei tua morte.
Martinho Lutero


O horror e a fatalidade têm tido livre curso em todos os tempos. Porque então datar esta estória que vou contar? Basta dizer que, no período de que falo, havia, no interior da Hungria, uma crença bem assentada, embora oculta, nas doutrinas da metempsicose. Das próprias doutrinas, isto é, de sua falsidade, ou de sua probabilidade, nada direi. Afirmo, porém, que muito de nossa incredulidade (como diz La Bruyère, explicando todas as nossas infelicidades) vient de ne pouvoir être seul. ["Provém de não podermos estar sozinhos."] (1)

Mas havia na superstição húngara alguns pontos que tendiam fortemente para o absurdo. Diferiam os húngaros, bastante essencialmente, de suas autoridades do Oriente. Por exemplo: a alma, dizem eles – cito as palavras dum sutil e inteligente parisiense – ne demeure qu’une seule fois dans un corps sensible: au reste un cheval, un chien, un homme même, n’est que la ressemblanc peu tangible de ces animaux. [só uma vez permanece num corpo sensível: quanto ao resto, um cavalo, um homem mesmo, não são senão a semelhança pouco tangível desses animais. (N. T.)]

As famílias de Berlifitzing e Metzengerstein viviam há séculos em discórdia. Jamais houvera antes duas casas tão ilustres acirradas mutuamente por uma hostilidade tão mortal. Parece encontrar-se a origem desta inimizade nas palavras duma antiga profecia: “Um nome elevado sofrerá queda mortal quando, como o cavaleiro sobre seu cavalo, a mortalidade de Metzengerstein triunfar da imortalidade de Berlifitzing.”

Decerto as próprias palavras tinham pouca ou nenhuma significação. Mas as causas mais triviais têm dado origem – e isso sem remontar a muito longe – a conseqüências igualmente cheias de acontecimentos. Além disso, as duas casas, aliás vizinhas, vinham de muito exercendo influência rival nos negócios de um governo movimentado. É coisa sabida que vizinhos próximos raramente são amigos e os habitantes do castelo de Berlifitzing podiam, de seus altos contrafortes, mergulhar a vista nas janelas do palácio de Metzengerstein. Afinal, essa exibição duma magnificência mais que feudal era pouco propícia a acalmar os sentimentos irritáveis Berlifitzings, menos antigos e menos ricos. Não há, pois, motivo de espanto para o fato de haverem as palavras daquela predição, por mais disparatadas que parecessem, conseguido criar e manter a discórdia entre duas famílias já predispostas a querelar, graças às instigações da inveja hereditária. A profecia parecia implicar – se é que implicava alguma coisa – um triunfo final da parte da casa mais poderosa já, e era sem dúvida relembrada, com a mais amarga animosidade, pela mais fraca e de menor influência.

O Conde Guilherme de Berlifitzing, embora de elevada linhagem era, ao tempo desta estória, um velho enfermo e caduco, sem nada de notável a não ser uma antipatia pessoal desordenada e inveterada pela família de seu rival e uma paixão tão louca por cavalos e pela caça que nem a enfermidade corporal nem a idade avançada nem a incapacidade mental impediam sua participação diária nos perigos das caçadas.

O Barão Frederico de Metzengerstein, por outro lado, ainda não atingira a maior idade. Seu pai, o Ministro G***, morrera moço. Sua mãe, Dona Maria, logo acompanhara o marido. Frederico estava, naquela época, com dezoito anos de idade. Numa cidade, dezoito anos não constituem um longo período; mas num lugar solitário, numa solidão tão magnificente como a daquela velha casa senhorial, o pêndulo vibra com significação mais profunda.

Em virtude de certas circunstâncias características decorrentes da administração de seu pai, o jovem barão, por morte daquele, entrou imediatamente na posse de vastas propriedades. Raramente se vira antes, um nobre húngaro senhor de tamanhos bens. Seus castelos eram incontáveis. O principal, pelo esplendor e pela vastidão era o palácio de Metzengerstein. Os limites de seus domínios jamais foram claramente delineados, mas seu parque principal abrangia uma área de cinqüenta milhas.

O acontecimento da entrada de posse de uma fortuna tão incomparável por um proprietário tão jovem e de caráter tão bem conhecido poucas conjeturas trouxe à tona referente ao curso provável de sua conduta. E de fato, no espaço de três dias, a conduta do herdeiro sobrepujou a do próprio Herodes e ultrapassou, de longe, as expectativas de seus admiradores mais entusiastas. Orgias vergonhosas, flagrantes perfídias, atrocidades inauditas deram logo a compreender a seus apavorados vassalos que nenhuma submissão servil de sua parte e nenhum escrúpulo de consciência da parte dele lhe poderia de ora em diante garantir a segurança contra as implacáveis garras daquele mesquinho Calígula. Na noite do quarto dia, pegaram fogo as estribarias do castelo de Berlifitzing e a opinião unânime da vizinhança acrescentou mais este crime à já horrenda lista dos delitos e atrocidades do barão.

Mas, durante o tumulto ocasionado por este fato, o jovem senhor estava sentado – aparentemente mergulhado em funda meditação – num vasto e solitário aposento superior do palácio senhorial dos Metzengerstein. As ricas, embora desbotadas, colgaduras que balançavam lugubremente nas paredes representavam as figuras sombrias e majestosas de milhares de antepassados ilustres. Aqui, padres ricamente arminhados e dignitários pontificais, familiarmente sentados com o soberano, opunham os seu veto aos desejos de um rei temporal ou reprimiam com o fiat da supremacia papal o centro rebelde do Grande-Inimigo. Ali, os negros e altos vultos dos príncipes de Metzengerstein – os musculosos corcéis de guerra pisoteando os cadáveres dos inimigos tombados – abalavam os nervos mais firmes, com sua vigorosa expressão; e aqui, ainda, voluptuosos e brancos como cisnes, flutuavam os vultos das damas de outrora, nos volteios duma dança irreal, aos acentos duma melodia imaginária.

Mas, enquanto o barão escutava ou fingia escutar a algazarra sempre crescente que se erguia das cavalariças de Berlifitzing – ou talvez meditasse em algum ato de audácia, mais novo e mais decidido -, seus olhos se voltaram involuntariamente para a figura dum enorme cavalo, dum colorido fora do comum, representado na tapeçaria como pertencente a um antepassado sarraceno da família de seu rival. O cavalo se mantinha, no primeiro plano do desenho, sem movimento, como uma estátua, enquanto que, mais para trás, seu cavaleiro derrotado perecia sob o punhal dum Metzengerstein.

Abriu-se nos lábios de Frederico uma expressão diabólica, ao perceber a direção que seu olhar tinha tomado, sem que ele o houvesse notado. Contudo não desviou a vista. Pelo contrário podia de forma alguma explicar a acabrunhante ansiedade que parecia apoderar-se, como uma mortalha, de seus sentidos. Era com dificuldade que conciliava suas sensações imaginárias e incoerentes com a certeza de estar acordado. Quanto mais olhava, mais absorvente se tornava o feitiço, mais impossível lhe parecia poder a arrancar seu olhar do fascínio daquela tapeçaria. Mas a algazarra de fora se tornou de repente mais violenta e, com um esforço constrangedor, desviou sua atenção para o clarão de luz vermelha lançado em cheio sobre as janelas do aposento pelas cavalariças chamejantes.

A ação, porém, foi apenas momentânea; seu olhar se voltou maquinalmente para a parede. Com extremo espanto e horror, verificou que a cabeça do gigantesco corcel havia, entrementes, mudado de posição. O pescoço do animal antes arqueado, como que de compaixão, sobre o corpo prostrado de seu dono, estende-se agora, plenamente, na direção do barão. Os olhos, antes invisíveis, tinham agora uma expressão enérgica e humana, e cintilavam com um vermelho ardente e extraordinário; e os beiços distendidos do cavalo, que parecia enraivecido, exibiam por completo seus dentes sepulcrais e repugnantes.

Estupefato de terror, o jovem senhor dirigiu-se, cambaleante, para a janela. Ao escancará-la, um jato de luz vermelha, invadindo até o fundo do aposento, lançou a sombra dele em nítido recorte de encontro à tapeçaria tremulante. Ele estremeceu, ao perceber que a sombra – enquanto se detinha vacilante no umbral – tomava exata posição e preenchia, precisamente, o contorno do implacável e triunfante matador do sarraceno Berlifitzing.

Para aliviar a depressão de seu espírito, o barão correu para o ar livre. No portão principal do palácio encontrou três eguariços. Com muita dificuldade, e com imenso perigo de suas vidas, continham eles os saltos convulsivos dum cavalo gigantesco e de cor avermelhada.

- De quem é esse cavalo? Onde o encontraram? – perguntou o jovem, num tom lamentoso e rouco, ao verificar, instantaneamente, que o misterioso corcel do quarto tapeçado era a reprodução do furioso animal que tinha diante dos olhos.

- Ele vos pertence, senhor – respondeu um dos eguariços – ou pelo menos não foi reclamado por nenhum outro proprietário. Nós o pegamos quando fugia, todo fumegante e escumando raiva, das cavalariças incendiadas do castelo de Berlifitzing. Supondo que pertencesse à manada de cavalos estrangeiros do velho conde, levamo-lo para trás, como se fosse um dos remanescentes da estribaria. Mas os empregados ali negam qualquer direito ao animal, o que é estranho, uma vez que ele traz marcas evidentes de ter escapado dificilmente dentre as chamas.

- As letras “W. V. B.” estão também distintamente marcadas na sua testa – interrompeu um segundo eguariço. – Supunha, portanto que eram as iniciais de Wilhelm von Berlifitzing, mas todos no castelo negam peremptoriamente conhecer o cavalo.

- É extremamente singular! – disse o jovem barão, com um ar pensativo e parecendo inconsciente do significado de suas palavras… – É, como dizem vocês, um cavalo notável, um cavalo prodigioso… embora, como vocês muito bem observaram, de caráter, arisco e intratável… Pois que me fique pertencendo – acrescentou ele depois duma pausa. – Talvez um cavaleiro como Frederico Metzenterstein possa domar até mesmo o diabo das cavalariças de Berlifitzing.

- Estais enganado, senhor. O cavalo, como já dissemos, creio eu, não pertence às cavalariças do conde. Se tal se desse, conhecemos demasiado nosso dever para trazê-lo à presença duma nobre pessoa de vossa família.

- É verdade! – observou o barão, secamente.

Nesse momento, um jovem camareiro veio a correr, afogueado, do palácio. Sussurrou ao ouvido de seu senhor a estória do súbito desaparecimento de pequena parte da tapeçaria, num aposento que ele designou, entrando, ao mesmo tempo, em pormenores de caráter minucioso e circunstanciado. Mas como tudo isto foi transmitido em tom de voz bastante baixo, nada transpirou que satisfizesse a excitada curiosidade dos eguariços.

O jovem Frederico, enquanto ouvia, mostrava-se agitado por emoções variadas. Em breve, porém, recuperou a compostura e uma expressão de resoluta maldade espalhou-se-lhe na fisionomia ao dar expressas ordens para que o aposento em questão fosse imediatamente fechado e a chave trazida às suas mãos.

- Soubeste, senhor, da lamentável morte do velho caçador Berlifitzing? – perguntou um de seus vassalos ao barão, enquanto, após a partida do camareiro, o enorme corcel, que o gentil-homem adotara como seu, saltava e corveteava, com redobrada fúria, pela longa avenida que se estendia desde o palácio até as cavalariças de Metzengerstein.

- Não! – disse o barão, voltando-se abruptamente para quem lhe falava – Morreu, disse você?

- É a pura verdade, senhor, e suponho que para um nobre com o vosso nome não será uma notícia desagradável.

Rápido sorriso abriu-se no rosto do barão.

- Como morreu ele?

- Nos seus esforços imprudentes para salvar a parte favorita de seus animais de caça, pereceu miseravelmente nas chamas.

- De… ve… e… e… ras! exclamou o barão, como que impressionado, lenta e deliberadamente, pela verdade de alguma ideia excitante.

- Deveras – repetiu o vassalo.

- Horrível – disse o jovem, com calma, e voltou sossegamente ao palácio.

Desde essa data, sensível alteração se operou na conduta exterior do jovem e dissoluto Barão Frederico de Metzengerstein. Na verdade, seu procedimento desapontava todas as expectativas e se mostrava pouco em acordo com as vistas de muita mamãe de filha casadoira, ao passo que seus hábitos e maneiras, ainda menos do que dantes, não ofereciam algo de congenital com os da aristocracia da vizinhança. Nunca era visto além dos limites de seu próprio domínio e, no vasto mundo social, andava absolutamente sem companheiros, a não ser, na verdade, aquele cavalo descomunal, impetuoso e fortemente colorido, que ele de contínuo cavalgava a partir dessa época, tivesse qualquer misterioso direito ao titulo de seu amigo.

Numerosos convites, da parte dos vizinhos, chegaram, durante muito tempo: “Quererá o barão honrar nossas festas com sua presença?” “Quererá o barão se juntar a nós para caçar javali?” – “Metzengerstein não caça” ou “Metzengerstein não comparecerá” eram as respostas lacônicas e arrogantes.

Estes repetidos insultos não podiam ser suportados por uma nobreza imperiosa. Tais convites tornaram-se menos cordiais, menos freqüentes, até que cessaram por completo. A viúva do Conde de Berlifitzing exprimiu mesmo, como se diz ter-se ouvido, a esperança de “que o barão estivesse em casa, quando não desejava estar em casa, desde que desdenhava a companhia de seus iguais e que andasse a cavalo, quando não queria andar a cavalo, uma vez que preferia a companhia de um cavalo”. Isto decerto era estúpida explosão da hereditária má-vontade e provava, tão-só, quanto se tornam nossas palavras singularmente absurdas quando desejamos dar-lhes forma enérgica fora do comum.

As pessoas caridosas, no entanto, atribuíam a alteração de procedimento do jovem fidalgo à tristeza natural de um filho pela precoce perda de seus pais, esquecidas, porém, de sua conduta atroz e dissipada durante o curto período que se seguiu logo àquela perda. Alguns havia, de fato, que a atribuíam a uma ideia demasiado exagerada de sua própria importância e dignidade. Outros ainda (entre os quais pode ser mencionado o médico da família) não hesitavam em falar numa melancolia mórbida e num mal hereditário, enquanto tenebrosas insinuações de natureza mais equivocas corriam entre o povo.

Na verdade, o apego depravado do barão à sua montaria recentemente adquirida – apego que parecia alcançar novas forças a cada novo exemplo das inclinações ferozes e demoníacas do animal – tornou-se, por fim, aos olhos de todos os homens de bom-senso, um fervor nojento e contra a natureza. No esplendor do meio-dia, a horas mortas da noite, doente ou com saúde, na calma ou na tempestade, o jovem Metzengerstein parecia parafusado à sela daquele cavalo colossal, cujas ousadias intratáveis tão bem se adequavam ao próprio espírito do dono.

Havia, além disso, circunstâncias que, ligadas aos recentes acontecimentos, davam um caráter sobrenatural e monstruoso à mania do cavaleiro e às capacidades do corcel. O espaço que ele transpunha em um simples salto fora cuidadosamente medido e verificou-se que excedia, por uma diferença espantosa, as mais ousadas expectativas das mais imaginosas criaturas. Além disso, o barão não tinha um nome particular para o animal, embora todos os outros de suas cavalariças fossem diferençados por denominações características. Sua estrebaria também ficava a certa distância dos restantes, e, quanto ao trato e outros serviços necessários, ninguém a não ser o dono em pessoa, se havia aventurado a fazê-los ou mesmo a entrar no recinto da baia particular daquele cavalo.

Observou-se também que, embora os três estribeiros que haviam capturado o corcel quando este fugia do incêndio em Berlifitzing houvesse conseguido deter-lhe a carreira por meio dum laço corrediço, nenhum dos três podia afirmar com certeza que tivesse, no correr daquela perigosa luta, ou em outro qualquer tempo depois, posto a mão sobre o corpo do animal. Provas de inteligência característica na conduta dum nobre cavalo árdego não bastariam, decerto para excitar uma atenção desarrazoada, mas havia certas circunstâncias que violentavam os espíritos mais cépticos e mais fleumáticos.

E dizia-se que, por vezes, o animal obrigava a multidão curiosa que o cercava a recuar de horror diante da profunda e impressionante expressão de seu temperamento terrível e que, outras vezes o jovem Metzengerstein empalidecera e fugira diante da súbita e inquisitiva expressão de seu olhar quase humano.

Entre toda a domesticidade do barão ninguém havia, porém, que duvidasse do ardor daquela extraordinária afeição que existia da parte do jovem fidalgo pelas ferozes qualidades de seu cavalo; ninguém, exceto um insignificante e disforme pajenzinho, cujos aleijões estavam sempre à mostra de todos e cujas opiniões não tinham a mínima importância possível. Ele (se é que suas idéias são dignas afinal de menção) tinha o desplante de afirmar que seu senhor jamais montava na sela sem um estremecimento inexplicável e quase imperceptível, e que ao voltar de cada um de seus demorados e habituais passeios uma expressão de triunfante malignidade retorcia todos os músculos de sua fisionomia.

Numa noite tempestuosa, Metzengerstein, despertando dum sono pesado, desceu, como um maníaco, de seu quarto e, montando a cavalo, a toda a pressa lançou-se a galope para o labirinto da floresta. Uma ocorrência tão comum não atraiu particular atenção, mas seu regresso foi esperado com intensa ansiedade pelos seus criados quando, após algumas horas de ausência, as estupendas e magníficas seteiras do palácio de Metzengerstein se puseram a estalar e a tremer até às bases, sob a ação duma densa e lívida massa de fogo indomável.

Como as chamas, quando foram vistas pela primeira vez já tivessem feito tão terríveis progressos que todos os esforços para salvar qualquer parte do edifício eram evidentemente inúteis, toda a vizinhança atônita permanecia ociosa e calada, senão apática. Mas outra coisa inesperada e terrível logo prendeu da turba e demonstrou quão muito mais intensa é a excitação provocada nos sentimentos duma multidão pelo espetáculo da agonia humana do que suscitada pelas mais aterradoras cenas da matéria inanimada.

Ao longo da comprida avenida de anosos carvalhos que levava da floresta até a entrada principal do palácio de Metzengerstein um corcel, conduzindo um cavaleiro sem chapéu e em desordem era visto a pular com uma impetuosidade que ultrapassava a do próprio Demônio da Tempestade.

Era evidente que o cavaleiro não conseguia mais dominar a carreira do animal. A angústia de sua fisionomia, os movimentos convulsivos de toda a sua pessoa mostravam o esforço sobre-humano no que fazia; mas som algum, a não ser um grito isolado, escapava de seus lábios lacerados, que ele mordia cada vez mais, no paroxismo do terror. Num instante, o tropel dos cascos ressoou forte e áspero acima do bramido das labaredas e dos assobios do vento, um instante ainda e, transpondo dum só salto o portão e o fosso, o corcel lançou-se pelas escadarias oscilantes do palácio e, como o cavaleiro, desapareceu no turbilhão caótico do fogo.

A fúria da tempestade imediatamente amainou e uma calma de morte sombriamente se seguiu. Uma labareda pálida ainda envolveu o edifício como uma mortalha, e, elevando-se na atmosfera tranquila, dardejava um clarão de luz sobrenatural, enquanto uma nuvem de fumaça se abatia pesadamente sobre as ameias com a forma bem nítida dum gigantesco cavalo.
Edgar Allan Poe
Notas:
1. Mercier, em L’an deux mille quatre cents quarante (O Ano 2440), defende seriamente as doutrinas da metempsicose, e J. D’Israeli diz que “não há sistema tão simples e que menos repugne a inteligência“. O Coronel Ethan Alteo, o Green Mountain Boy (O Garoto da Montanha Verde), foi também, segundo dizem, um sério e importante metempsicosista.


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