O estádio prisão brasileiro

em 01/04/2014

Protesto em Caio Martins, em maio de 2012 (Foto: Niterói pela Memória, Verdade e Justiça)
Olá amigos e amigas...Há alguns dias foi ao ar aqui no Noite Sinistra um texto falando de como os militares chilenos, que tomaram o poder naquele país durante o golpe militar de 1973, usaram o estádio Nacional como prisão e centro de tortura improvisado (clique aqui para ler o texto). Mas o Chile não foi o único país sul americano a fazer uso de tal artifício. Militares brasileiros já haviam feito uso de um estádio para aprisionar pessoas consideradas perigosas pelo governo militar.

O golpe militar de 64


Ontem (31-03-14) completou-se os 50 anos do início do golpe militar de 64, que tirou do poder o presidente João Goulart, e deu aos militares brasileiros o controle do Brasil, dando início a uma longa ditadura, que durou até 1985, onde os "inimigos do governo" eram tratados sem nenhuma gentileza. Tortura, assassinatos, personalidades exiladas, fim da liberdade de imprensa e de expressão, foram algumas das medidas impostas pelo governo militar brasileiro, nesse que foi o período mais sombrio da história recente do Brasil.


O estádio prisão brasileiro

Sob a mira de metralhadoras, 400 homens viam o sol pela primeira vez depois de um mês de reclusão. Alguns olhavam para o céu e derramavam lágrimas. Outros aproveitavam de forma diferente a liberdade: Tiravam a camisa e rolavam na grama. Cinco semanas após o golpe militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart, o estádio Caio Martins era palco de cenas muito diferentes de um jogo de futebol.

Casa do Botafogo em várias partidas da conquista do Brasileirão de 1995 e na campanha da segunda divisão de 2003, o complexo esportivo niteroiense foi, também, testemunha de gritos, ameaças e o encarceramento de presos políticos. Foram aproximadamente 1,2 mil, de acordo com as contas do advogado trabalhista Manoel Martins.


Aos 84 anos, o hoje pacato morador de Niterói guarda tristes lembranças do estádio. Ele foi um dos primeiros presos a chegar a Caio Martins. Depois do golpe, realizado na noite entre 31 de março e 1º de abril, e de uma série de prisões no dia seguinte, Manoel fugiu com outras sete pessoas para uma casa de pau-a-pique em Tribobó, bairro de São Gonçalo. Seu trabalho em sindicatos e suas convicções comunistas o condenavam, mas, em 9 de abril – depois de um recado enviado por um membro do Partido Comunista do Brasil –, Manoel e seus companheiros abandonaram o esconderijo com a sensação de que o pior já passara. Ledo engado.


Antes de voltar para casa, Manoel foi a seu escritório. Lá, encontrou documentos e objetos espalhados pelo chão. “Naquela hora percebi que seria preso”, conta. Imediatamente pediu proteção na sede da OAB no Estado, onde policiais civis já o aguardavam. Os agentes eram seus amigos e chegaram a pedir-lhe desculpas antes de o prenderem.

O destino inicial não foi o estádio. Manoel frequentou diferentes celas, como outros tantos perseguidos políticos. Ele esteve no Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no Cenimar (Centro de Informação da Marinha) e em um quartel da PM. Todo esse caminho durou cerca de três semanas até que foi encaminhado ao Caio Martins. No Cenimar, conta o advogado, presos eram levados em grupos para uma caminhada que terminava em frente a uma grande cova aberta. Eles tinham de ficar ali, parados, olhando para o buraco e imaginando o próprio fim. A tortura psicológica seria uma rotina nos meses seguintes.

Transferido para Caio Martins, Manoel enfrentou novos traumas. Os militares não deixavam de apontar metralhadoras – com o dedo no gatilho – em nenhum momento. Os presos sempre eram acompanhados por soldados, até no banheiro. “Estou como preso político e não com prisão de ventre”, brincou um dos presos, em um raro instante de descontração, como se recorda Manoel.

O Exército não guarda a história na memória e não reconhece o local como prisão. Com a lei do silêncio prevalecendo, não se sabe o porquê do Caio Martins ter sido escolhido como prisão, tampouco o tempo exato em que as instalações estiveram à disposição das Forças Armadas.

Assim, a melhor maneira de descrever o complexo esportivo na década de 1960 e o modo como foi utilizado é pelo pouco registro em jornais da época e a lembrança de quem esteve detido. Em relação ao que existe hoje, as instalações não mudaram muito. A principal alteração é a inclusão de uma piscina.

Os presos ficavam no ginásio, espalhados nos degraus da arquibancada de concreto. Aqueles que haviam concluído um curso universitário dormiam em dois quartos com espaço para pouco mais de 15 pessoas cada. Criados para abrigar atletas, os alojamentos ficam no segundo andar do ginásio, próximo às salas administrativas. Suas janelas dão vista para o estádio de futebol.

O banho de sol era realizado no gramado. Enquanto os presos ficavam no campo, soldados os vigiavam da arquibancada. Atualmente, o Caio Martins tem dois setores de arquibancada de concreto, mas, em 1964, havia somente um – coberto e onde estão hoje as sociais, as cabines de imprensa e os vestiários.

Esse cotidiano foi muito duro para Antônio Carneiro da Silva, líder do Sindicato dos Condutores da Marinha Mercante. Tão difícil que nem sua família tem detalhes do que ele passou em Caio Martins. Falecido em 2004, Carneiro, como era conhecido na vida sindical, trocou o gosto por flauta e violão pelo álcool. Poucas vezes falou sobre o período em que esteve preso e, quando o fazia, se referia ao que havia ocorrido com os outros, nunca com ele.

Em 2 de abril de 1964, no bairro de Cubango, Niterói, Carneiro acompanhava as notícias no rádio, mas não imaginava que seria preso. A caçada visava somente os comunistas e ele não contava com material comprometedor em casa. De acordo com Rosemary Carneiro da Silva, filha do sindicalista, quatro ou cinco homens obrigaram o porteiro a deixá-los entrar no prédio. Eles vasculharam o apartamento à procura de material considerado subversivo. Ao verem uma Bíblia com capa vermelha, identificaram uma associação de Carneiro com o comunismo. Uma foto do sindicalista ao lado do presidente deposto, João Goulart, piorou ainda mais a situação e motivou a prisão.

Nas primeiras horas, não havia notícias de Carneiro. No dia seguinte, o sindicato informou à família seu paradeiro. Ele torcia pelo América e ouvia os jogos pelo rádio para evitar as arquibancadas. Só ganhou intimidade com um estádio de futebol na condição de preso político. Quando as famílias puderam fazer uma visita aos parentes presos, Rosemary, então com dez anos, foi ao Caio Martins. “Era um lugar triste, muito triste”, recorda-se. “Fiquei surpresa ao ver meu pai barbado, magro e abatido.”

A prisão abalou a família. Grávida, sua esposa perdeu o bebê. Nos anos seguintes, Carneiro teve problemas no trabalho e abandonou a vida sindical. Para conter despesas, a esposa foi morar com as filhas em Santa Catarina. Anos mais tarde, elas retornaram, mas as feridas ainda estavam abertas. Em 1999, Carneiro entrou com uma ação no Ministério da Justiça para obter uma indenização. Morreu aos 78 anos sem receber qualquer resposta sobre o caso. Hoje, suas filhas Rosemary e Roseli mantêm o processo.

Se para quem só esteve em Caio Martins para visita a lembrança ainda causa desconforto, para os detentos é particularmente violenta. “Foi um troço brutal. Havia um comandante perverso que usava chicote”, relata Manoel Martins, sem perder o tom sereno. Ele se lembra de uma história nos primeiros dias de que todas as refeições dos presos, vindas de um quartel, havia sido envenenada por ordem de um anticomunista.

Com dificuldade para lidar com a situação, houve quem chegasse a buscar saídas radicais. “Tem momentos em que companheiros ficam desesperados. Um, de Cabo Frio, queria se jogar e quem o agarrou fui eu”, conta o advogado enquanto olha pela janela do alojamento a cerca de seis metros do chão. Ele aponta e mostra onde ficavam os soldados com fuzis 24 horas por dia mirando para os detentos. “Eu me arrisquei, pois qualquer movimento brusco podia provocar um tiro. Esse companheiro saiu daqui para o manicômio.” Segundo ele, outros cortavam os pulsos em uma tentativa desesperada de suicídio. (Clique aqui e leia o texto que fala como os militares usaram um hospício como depósito de presos políticos)

O advogado tinha experiência para encarar com mais facilidade a situação. Manoel foi preso em 1948 na campanha “O petróleo é nosso” enquanto era secretário da União Nacional de Estudantes. Envolvido nos sindicatos como advogado trabalhista, era tido em 1964 como um dos líderes das greves. Depois da permanência no Caio Martins, alterou períodos de clandestinidade e de novas prisões. Mesmo comum habeas corpus em 1971, foi preso mais uma vez e ficou retino no Dops. Sua última prisão aconteceu em 1976. Hoje, Manoel Martins é mais um dos tantos presos políticos que aguardam o resultado de um pedido de indenização junto à União.

Ele calcula ter ficado entre 12 e 16 dias sob vigilância do Exército no complexo esportivo niteroiense. O advogado não se esquece da cantoria no ginásio escuro. Testemunhas de Jeová, a maioria lavradores analfabetos de assentamentos do interior do estado, cantavam: “Abre a porta que lá vem Jesus / Ele vem cansado, carregando a cruz”. Acabaram convencidos pelos outros a parar de cantar. Supersticiosos acreditavam que, quanto mais a cantoria continuava, mais presos chegavam.

Manoel ainda se lembra bem dos colegas de detenção, se refere a todos por nome e sobrenome. Caso de Geraldo Reis, professor de português e intelectual niteroiense. Comunista declarado, Reis foi deputado estadual em dois mandatos pelo PSB. Em 1964, perdeu os direitos políticos por dez anos e passou por prisões como a Fortaleza Santa Cruz e o Forte Barão do Rio Branco antes de chegar a Caio Martins, de onde foi solto por problemas de saúde.

Túlio Bulcão, professor de geografia e amigo de Geraldo, acredita que deputado foi preso por ter o nome em uma lista encomendada por Carlos Lacerda logo após o golpe, conforme notícia que se alastrou na época. “Era o que diziam.” O então governador da Guanabara apoiou a “Revolução de 64”, mas dois anos mais tarde mudou de lado e, em 1968, foi mais um cassado pelo regime.

Em Caio Martins, Geraldo dormiu, segundo Bulcão, nas arquibancadas do ginásio. Com formação em Filosofia e Direito, ele poderia ficar em um dos alojamentos, mas abriu mão do direito. “Ele contava que tinha preferido se juntar ao povão.” No mesmo ano em que foi preso, Geraldo viu seu filho Aquiles começar a carreira musical como integrante original da banda MPB-4, da qual faz parte até hoje.

O ex-deputado faleceu em 1973, vítima de aplasia medular, cujas complicações foram agravadas na prisão. Como homenagem, seu nome batiza um Ciep em Niterói e o colégio da Universidade Federal Fluminense. Seu filho seguiu na música, mas não negou a herança familiar combativa. Entre 1982 e 85, Aquiles Reis foi presidente do Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro.

Em maio de 1964, o general Paulo Torres foi nomeado governador do Estado do Rio de Janeiro, cuja capital era Niterói (a cidade do Rio de Janeiro era o Estado da Guanabara). Antes, no golpe da madrugada de 31 de março para 1º de abril, Badger da Silveira, governador eleito pelo voto, teve o mandato cassado e perdeu os direitos políticos por dez anos. Em seu lugar entrou Cordolino José Ambrósio, presidente da Assembleia Legislativa. Para os presos, a chegada de Torres significou o relaxamento das condições em Caio Martins. Por interferência do general, o Exército deixou o complexo esportivo, que passou a ser controlado pela PM.

Na segunda semana de maio, últimos dias do controle do Exército no estádio, assistentes sociais tiveram acesso às instalações. Visitas familiares foram organizadas e, finalmente, os presos receberam notícias do que se passava no País e em suas casas. Depois de alguns meses, eles foram liberados ou remanejados para outros presídios. Manoel saiu em julho e acredita ter sido um dos últimos. Pouco depois, o futebol voltou ao estádio. Em 2 de agosto, o Caio Martins recebeu o jogo em que o Canto do Rio perdeu por 4 a 0 para o America no Campeonato Carioca.

Torcedor americano como o sindicalista Carneiro, Manoel Martins só voltou ao estádio niteroiense duas vezes. Na primeira, em 1995, acompanhava o neto, então com 12 anos, quando seu time perdeu por 1 a 0 para o Fluminense. “Naquele dia, senti de novo toda aquela angústia dos meses na prisão”, conta. A segunda vez que o advogado esteve em Caio Martins foi  em 2009 para conversar com a reportagem da Revista Trivela. Detalhe: o estado fica a menos de 500 metros de sua casa.


O estádio Caio Martins ficou marcado para Manoel Martins como o local em que viveu os piores momentos de sua vida. Foi uma passagem forte o suficiente para romper sua ligação com o esporte de Niterói. O advogado foi presidente do Departamento Niteroiense de Futebol, que mais tarde se tornou Departamento Niteroiense de Esportes, quando chegou a conhecer João Havelange. Assim, ele acompanhou de perto a construção do complexo esportivo, em 1941.

O projeto inicial não era voltado ao futebol. Um grupo australiano esperava montar um canódromo (pista para corrida de cães) e gerenciar suas apostas. Foi construída uma arquibancada de concreto (as atuais “sociais”) antes de a obra ser embargada pela prefeitura. Depois, a estrutura foi adaptada para receber um estádio de futebol com pista de atletismo e um ginásio.

O complexo passou a ser usado pelo Canto do Rio, que ultrapassou as barreiras estaduais para disputar o Campeonato Carioca, torneio com os times do Distrito Federal (na época, a cidade do Rio de Janeiro). A decisão agradava ao interventor Amaral Peixoto, governador do Rio de Janeiro e mentor da ideia. Com a construção de Brasília, em 1960, a antiga capital passou a ser o Estado da Guanabara.

Nada mudou para o time niteroiense, que continuou no torneio do Estado vizinho até 1964, quando foi rebaixado. O suspiro final do Canto do Rio no Carioca foi dado aos 40 minutos do jogo contra o Fluminense, em 12 de outubro. Os times empatavam por 1 a 1 quando a torcida invadiu o gramado. Os 50 minutos restantes foram disputados dois dias mais tarde, em São Januário, e o Tricolor fez 4 a 1.

No ano em que presos políticos encheram o gramado do Caio Martins para um banho de sol, a invasão do mesmo campo representou a suspensão do Canto do Rio do campeonato do ano seguinte. O time jamais voltou à elite e, sem uso, o estádio de 12 mil lugares foi arrendado ao Botafogo, que o utiliza com campo de treinamento.


Matéria da Revista Trivela "Memórias do Cárcere" de Fevereiro de 2009. Por Eduardo Zobaran.

Fonte do Texto: Trivela

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3 comentários:

  1. Falando a verdade eu vivi a era da ditadura,sinto saudade e falta dela,minha vida era mais segura,não sou militar e nem fui e nem tem parentes,sou um simples cidadão,os que governas hoje o Brasil me da muito medo todos dias escandalos de roubo,e nem respeitas mais as leis,que são maiorias dos lados deles,me sinto inseguro e sem esperança no futuro.

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    1. Meus pais já haviam falado que na época da ditadura a vida era mais segura...mas isso não significa que os governantes da época não roubassem dinheiro público...o povo apenas não ficava sabendo de tais coisas, pois não havia liberdade de imprensa. E quem iria denunciar algo do tipo contra um governo que não tem medo de matar ninguém?

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    2. Você acha mesmo que o governo podendo prender qualquer um sem justificativa, alguém se arriscaria a roubar dinheiro público?

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